17/02/2022 10:00 - Valor Econômico
Por Daniel Rittner e Rafael Bitencourt — De Brasília
Pouco mais de 4 mil quilômetros de rodovias e aeroportos com cerca de 15 milhões de passageiros estão em processo de devolução amigável ao governo federal pelas atuais concessionárias privadas. A Malha Oeste, ferrovia que corta Mato Grosso do Sul e São Paulo, também pediu a entrega de seus ativos à União.
No mercado, avalia-se que a combinação de duas grandes crises econômicas em menos de uma década - a recessão do biênio 2015-2016 e a causada pela pandemia - foi fatal para o plano de negócios de muitas empresas.
Houve uma frustração generalizada das estimativas de crescimento que norteavam essas concessões. As rodovias leiloadas pelo governo da ex-presidente Dilma Rousseff, por exemplo, embutiam uma projeção de alta média do PIB de 2,5% ao longo de todos os 30 anos de vigência dos contratos. No caso dos aeroportos, previa-se que Viracopos (SP) teria mais passageiros em 2042 do que Heathrow, em Londres.
Além disso, é quase um consenso que boa parte das exigências de obras nos contratos do passado estava superdimensionadas. As estradas previam duplicação total em cinco anos. Viracopos poderia ter até quatro pistas.
Para complicar ainda mais: os grupos vitoriosos nos leilões, embalados pela euforia do começo da década passada, frequentemente fizeram propostas consideradas ousadas demais. A Odebrecht venceu a disputa pelo Galeão (RJ) com ágio de 294%. Nas rodovias leiloadas por Dilma, o desconto oferecido nas tarifas de pedágio chegou a 61% - caso da BR-040, de Brasília a Juiz de Fora (MG), que está sendo devolvida.
Um problema adicional foi a Operação Lava-Jato, que travou financiamentos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para muitas empreiteiras envolvidas em corrupção e que haviam arrematado as concessões. Os empréstimos do banco estatal eram essenciais na modelagem e foi com base em taxas de juros subsidiadas que muitos grupos deram seus lances.
Cinco operadoras de rodovias deram entrada na Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) pedindo devolução amigável: Via 040, MS Via, Concebra, Rota do Oeste e Autopista Fluminense. Com exceção da última, todas são concessionárias de estradas leiloadas por Dilma em 2013.
A Inframérica e o consórcio formado por UTC e Triunfo, respectivamente, iniciaram o processo de entrega dos aeroportos de São Gonçalo do Amarante (RN) e de Viracopos em março de 2020. Na semana passada, o Galeão formalizou pedido na Agência Nacional de Aviação Civil (Anac). O terminal é gerido pela Changi, de Cingapura.
A promessa do governo era relicitar as concessões em um prazo de até 24 meses contados a partir da qualificação de cada ativo pelo Programa de Parcerias de Investimentos (PPI). Na prática, tem demorado mais tempo e nenhuma relicitação sob a Lei 13.448 de 2017 foi feita até hoje.
A própria lei levou mais de dois anos para ser regulamentada porque o ex-presidente Michel Temer, investigado pela Procuradoria-Geral da República (PGR) no caso do Decreto dos Portos, manifestou publicamente receio de assinar outro decreto presidencial em que pudesse ser acusado de beneficiar empresas.
Com o respaldo na nova lei e com amplo apoio do segundo escalão do governo, a publicação do decreto gerou enorme expectativa no setor nos últimos meses da gestão Temer. A regulamentação ficou conhecida como “o decreto da semana que vem”, diante da falsa esperança criada com a iminente confirmação em edição do “Diário Oficial da União”.
A primeira devolução amigável qualificada pelo PPI, a da BR-040 (Brasília-Juiz de Fora), ocorreu em fevereiro de 2020. Em tese, o prazo vencia neste mês. A ANTT deverá prorrogar, nos próximos dias, o aditivo contratual com a concessionária Via 040 enquanto prepara sua relicitação.
“São as primeiras experiências de relicitação. É natural que haja uma curva de aprendizado”, diz o superintendente de infraestrutura rodoviária da agência, André Luís Freire. Ele lembra que, como parte de um processo inédito, o primeiro aditivo contratual com a Via 040 ficou sete meses parado por uma medida cautelar do Tribunal de Contas da União (TCU).
Esses aditivos definem questões como a tarifa a ser praticada até a relicitação, o nível mínimo de investimentos e serviços prestados aos usuários, a proibição de que lucros sejam distribuídos aos atuais acionistas da concessão.
Tiago Pereira, diretor da Anac, espera que o novo leilão de São Gonçalo do Amarante possa sair até o fim do primeiro semestre e a relicitação de Viracopos ocorra no fim de 2022. “É natural, quando se fala em troca de operador, que se crie uma expectativa geral de rápida passagem de bastão de uma concessionária para outra. Mas esse é um processo novo, que suscita dúvidas”, afirma Pereira.
Ao anunciar o pedido de devolução do Galeão, na semana passada, o ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, defendeu a relicitação como a saída menos traumática nos casos analisados tanto para as parte envolvidas quanto para os usuários do serviço, que não são afetados pelos risco de descontinuidade da operação. “É uma solução alternativa, um meio termo entre a execução do contrato e a decretação de caducidade”, afirmou o ministro naquela ocasião.
Na devolução amigável, a iniciativa deve partir da concessionária que formaliza o pedido ao governo. Então, deve-se assinar um termo aditivo que suspende a execução imediata de cláusulas contratuais e garante a continuidade da oferta dos serviços até a escolha de um novo operador.
O governo assume o compromisso de pagar indenização pelos investimentos não amortizados. Alguns valores já começaram a ser analisados pelas agências. Os números ainda serão auditados por verificadoras independentes que já começaram a ser contratadas. A ideia é usar a outorga cobrada na relicitação para custear boa parte das indenizações e não sobrecarregar o caixa do Tesouro.
Hoje, as agências travam uma discussão técnica com o TCU sobre como reconhecer os valores “incontroversos e controversos”. O esforço maior é de blindar o novo operador independentemente do desfecho desse debate.