Como serão as cidades no pós-pandemia

14/06/2020 08:00 - O Estado de SP

Metrópoles com bairros mais autossuficientes, menos deslocamentos para chegar ao trabalho ou ir à escola, uma mescla diferente de formas de transporte. Esses são alguns dos itens na pauta de sociólogos e urbanistas   

A pandemia da covid-19 paralisou o mundo e continua matando milhares de pessoas, infectadas por um micro-organismo para o qual não se tem remédio nem antídoto. Ameaças de tal natureza, em inúmeros momentos da história, moldaram grandes mudanças na sociedade e também no contorno das cidades. E desta vez não deve ser diferente. É essa reflexão que cientistas sociais e urbanistas estão fazendo agora.

Entre os principais aspectos estão a necessidade de discutir uma revisão do planejamento urbano, com novas formas de trabalho, lazer e circulação. Além de mudanças no modelo de transporte e melhores condições de moradia e mais infraestrutura sanitária.

Surgem ainda a preocupação com as favelas, a comunicação em redes digitais, políticas de proteção da intimidade, justiça social diante das desigualdades econômicas e até os conceitos de tamanho e cidades policêntricas. Tudo está em xeque pela violência da infecção.

Consultor da ONU e do Banco Mundial, o canadense Robert Muggah é um dos que acreditam que a atual pandemia não será exceção e também provocará transformações. “No século 13, a peste bubônica levou a maiores proibições a espaços urbanos apertados e esquálidos. Os surtos de malária e cólera no século 19 acarretaram mudanças nos sistemas de ventilação e esgoto”, conta o especialista, que também é diretor do Instituto Igarapé. “No século 20, pandemias de febre tifoide, poliomielite e gripe nos obrigaram a repensar tudo, desde as regras de zoneamento e manejo de resíduos até o design de espaços públicos.”

Para o empresário e urbanista Philip Yang, fazer um prognóstico dessas mudanças ainda é prematuro. “Estamos entre o ‘tudo mudará’ e o ‘nada mudará’. Epidemias piores do que esta foram esquecidas poucos anos depois do grande trauma”, justifica Yang, também diretor do Instituto Urbem.

O especialista diz que as cidades que já estão saindo do confinamento vêm adotando ferramentas low tech de urbanismo, como a delimitação do espaço público com fita sinalizadora e cones. “Num plano mais macro, imaginaria que a reocupação de ruas e espaços públicos devesse ser realizada em outras proporções”, explica. “No curto prazo, haverá demanda por estacionamento. Mas no longo, com os carros autônomos, os estacionamentos de rua deverão ceder espaço para calçadas mais largas e vias para bicicletas, patinetes e afins.”

Acompanhe neste especial, em reportagens e entrevistas, detalhes dessa discussão e o que já vem sendo feito.

Será a vez de metrópoles com bairros mais autossuficientes?

Conceito de cidades policêntricas, discutido várias vezes em São Paulo, voltou à tona com a pandemia

Giovanna Wolf e Pablo Pereira

Uma solução urbanística debatida há bastante tempo voltou a ganhar força com a pandemia do novo coronavírus: a criação de bairros mais autossuficientes, em que as pessoas não teriam de se deslocar diariamente por grandes distâncias para ir até os grandes centros trabalhar, estudar, comprar ou ir ao médico. Centros esses que acabam reunindo aglomerações por concentrarem os serviços.

A prefeita de Paris, Anne Hidalgo, passou a defender essa proposta e vem chamando a atenção de vários gestores. Dentro de sua plataforma para buscar a reeleição, ela tem o plano de transformar a capital francesa em uma “cidade de 15 minutos”, em que qualquer parisiense poderia fazer suas atividades essenciais do cotidiano em uma rápida caminhada a pé ou de bicicleta. Isso vale para escolas, locais de trabalho, opções de compra, esportes e lazer.

Para Tomas Alvim, coordenador do Laboratório Arq.futuro de Cidades do Insper, a ideia faz sentido. “Essa é uma tendência que a pandemia deve acelerar. As cidades atingiram um nível de espalhamento insustentável. O desenho urbano ideal tende a evitar grandes deslocamentos e concentração de pessoas”, diz ele. “As cidades desenvolvidas estão caminhando nessa direção. As europeias, por exemplo, têm um histórico de intervenção urbana consistente: são cidades que estão fazendo a lição de casa no planejamento urbano ao longo do século.”

Iniciativas semelhantes já existem em outros países. Em Vancouver, no Canadá, por exemplo, esse esforço é antigo. Um documento da cidade, datado de 1992, já destaca a importância de as famílias terem acesso a serviços comunitários essenciais e a lazer em um curto raio de distância de suas casas.

“As cidades consideradas com melhor qualidade de vida, como Vancouver, estão próximas desse desenho policêntrico. É um modelo que vem sendo buscado por várias razões. Entre elas, a questão climática, para evitar circulação de carros”, diz Wilson Ribeiro dos Santos Júnior, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da PUC-Campinas. Portland, nos Estados Unidos, e Melbourne, na Austrália, têm planos de comunidades mais autônomas — ambos se chamam “vizinhança de 20 minutos”.

Os desenhos de grandes cidades estão sendo repensados, segundo Santos Júnior. “Vivemos um momento inédito de aglomeração ao redor do globo. Com a pandemia, a organização das grandes cidades se tornou ainda mais necessária, principalmente reavaliar a concentração de serviços em centros”, diz o professor da PUC-Campinas.

VALORIZAÇÃO DO LOCAL

Em São Paulo, onde a questão foi pauta presente nas discussões dos últimos planos diretores, uma pesquisa divulgada nesta semana mostrou que, com a pandemia, 46% dos paulistanos passaram a dar mais valor para o comércio e os serviços disponíveis nos bairros onde moram e 30% prestam agora mais atenção aos serviços públicos locais. O estudo foi realizado pelo Ibope para Instituto Cidades Sustentáveis, em parceria com o Sesc, e ouviu pessoas das classes A, B e C.

Morador de Jurubatuba, na zona sul da capital, o empresário Marcos Ferruzi, de 55 anos, é um dos que estão mais atentos. Na opinião dele, seu bairro tem boa infraestrutura, área verde e comércio. Mesmo assim, Ferruzi notou durante a quarentena que ainda faltam alguns itens na região, como farmácias e mais agências bancárias.

“As duas principais agências usadas pela família ficam dentro do shopping SP Market, que está próximo. Com o shopping fechado, ficamos sem acesso a elas e tivemos de ir ao bairro vizinho. Percebemos que não há outra opção aqui”, conta. “Já a farmácia que fica aqui perto de casa é pequena e não tem tudo o que a gente compra de medicamento no mês. Por isso, a gente costumava ir a uma fora do bairro.”

Coordenador da Rede Cidades Sustentáveis, Jorge Abrahão diz que a quarentena trouxe à tona as questões locais. “O fato de estarmos em isolamento, vivenciando mais o território e as questões mais próximas de onde moramos, está fazendo as pessoas se abrirem um pouco para questões com as quais elas não lidavam antes, como a relação com o comércio e os prestadores de serviços da região”, afirma Abrahão. “Isso pode animar o comércio e ter impacto na economia local, o que é importante.”

Abrahão, no entanto, ressalta que é preciso separar o momento atual - com a covid-19 ainda em expansão e com as pessoas refletindo mais sobre o que ocorre na cidade - de um futuro próximo, com possíveis mudanças de hábito decorrentes da pandemia. “É difícil a gente dizer que vai permanecer assim. Eu diria que, quando retomarmos, vai haver alguma perda nisso, mas algo ficará marcado”, argumenta. “Acho que, sim, vai haver um movimento com o olhar mais da proximidade. E isso pode ser um dos fatores interessantes que a gente venha a ter como caminho.”

A cirurgiã dentista Iolanda Morais, de 54 anos, mora no Bom Retiro há cinco e diz que sua região é tranquila e pacata. O ponto negativo, como observou, é que ela acaba dependendo muito do automóvel. “Sou acostumada a pegar o carro e ir até uma padaria mais distante e a um mercado maior para ter mais qualidade”, conta Iolanda. “Na pandemia, continuei a pegar o carro para sair do bairro para compras. Os poucos mercados são pequenos e não me atendem muito.”

Apesar disso, ela notou que passou a caminhar mais durante a quarentena, algo que aconteceu com 11% dos paulistanos, segundo a pesquisa. “Comecei a perceber mais o bairro. Tem muitos lugares interessantes. Você não vê mais só os telhados, vê as construções de perto, os detalhes das coisas”, diz a dentista. “Tive até a experiência na quarentena de passar a pé pela ponte da Casa Verde pela primeira vez. Pude observar o que é o Rio Tietê de verdade, ver a anatomia da cidade. Coisas que de carro a gente não presta atenção.”

O estudo sobre os efeitos da pandemia em São Paulo também mostrou que 70% dos paulistanos acreditam que a cidade deve repensar investimentos em um sistema de transporte que dê prioridade aos deslocamentos a pé e de bicicleta. O urbanista Philip Yang, diretor do Instituto Urbem, diz que ainda é cedo para antecipar exatamente como ficará o modelo de transporte.

“Certamente, podemos imaginar que teremos um novo ‘mix’ de modais de transporte, mas as modalidades de alta capacidade (metrô, trem metropolitano, corredores de ônibus) deverão permanecer, provavelmente com novos padrões de uso, com uma densidade de passageiros por metro quadrado menor”, afirma o urbanista Yang. “A grande chave do regresso em segurança ao transporte público será a distribuição dos horários de pico, por meio de medidas de redução e distribuição da demanda, e com regras claras de uso de equipamento de proteção. Outra possibilidade de mudança vem com a aceleração de soluções de micromobilidade, desde bicicletas e patinetes a patins e segways, individuais e compartilhadas.”

ESTUDOS

Para Alvim, do Insper, o caminho é estudar e olhar para as experiências de outros países. “Estamos vivendo uma oportunidade histórica para rever esses desenhos e planejamentos. Muitas cidades ao redor do mundo conseguiram melhorar e vão conseguir avançar agora na pandemia porque têm programas contínuos, que avaliam esses impactos”, afirma. “Não basta saber o que fazer, tem de analisar as situações, entender as realidades e saber executar.”

Já na visão de Geovany Jessé Alexandre da Silva, professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), ainda faltam evidências científicas para concluir que de fato esse desenho policêntrico será o ideal no pós-pandemia. “Vamos precisar de pesquisas para entender quais modelos efetivamente diminuem o contágio e se os comportamentos espaciais impactam tanto quanto o comportamento das pessoas.”

‘Podemos ganhar muito tempo usando a tecnologia a nosso favor’, diz Lilia Schwarcz

Para antropóloga, home office pode ser uma solução para o congestionamento de metrópoles, mas desigualdade social no Brasil precisa ser levada em conta

Iolanda Paz

No período de quarentena por causa do novo coronavírus, uma parcela da população brasileira está aperfeiçoando seu uso da tecnologia, principalmente no que diz respeito a reuniões online. “Estamos aprendendo que nem tudo precisa ser presencial”, diz Lilia Schwarcz. Segundo a antropóloga, algumas práticas do home office podem ser uma maneira de desafogar o trânsito das grandes cidades. "Não para ficarmos confinados em casa, mas para que possamos ter mais elasticidade no cotidiano, sem que tenhamos de sair de casa todos ao mesmo tempo", explica Lilia. Porém, a antropóloga afirma que a desigualdade social no Brasil precisa ser considerada.

O Brasil é o sétimo país mais desigual do mundo, segundo o último relatório divulgado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), em dezembro de 2019. Esse é um dos motivos pelos quais a quarentena do novo coronavírus não se configura da mesma forma para toda a população. “São ‘quarentenas’ que têm marcadores sociais de gênero, de classe e de região”, diz Lilia. Nas favelas, por exemplo, a dificuldade de resguardar o isolamento social pode estar até mesmo dentro de casa, pela quantidade de pessoas que moram juntas em locais muito pequenos. “A quarentena tem de ser entendida no plural, não são todas iguais no Brasil”, afirma a antropóloga.

ENTREVISTA

PHILIP YANG - URBANISTA, EMPRESÁRIO E DIRETOR DO INSTITUTO URBEM

Pablo Pereira

O senso comum pode até achar contraditório. Para urbanistas como Philip Yang, do Instituto Urbem, no entanto, a densidade populacional não é necessariamente um problema para as cidades, quando se tem a infraestrutura necessária. Já o espraiamento urbano pode causar danos. Entre eles, os ambientais. Confira, abaixo, trechos da entrevista:

? O trabalho dos urbanistas nos últimos anos foi no sentido de  aumentar a densidade populacional nas cidades. Com a pandemia, o que acontece daqui para frente? 

É cedo para antecipar tendências, mas sigo bastante otimista com relação às vantagens e às tendências seculares de adensamento. Veja o exemplo de Hong Kong. É a cidade que registra os maiores índices de densidade construtiva e habitacional no mundo e a que foi mais atingida pela Sars em 2003. Apesar do trauma, a cidade seguiu aprofundando o seu processo de adensamento após aquela epidemia. Gosto também de lembrar: hoje, estamos vendo que aglomerar pode ser perigoso, mas necessitamos ter em mente que desaglomerar também nos traz consequências ambientalmente devastadoras. Com o espraiamento urbano, entramos em colisão com reservas florestais, fronteiras agrícolas, reservatórios de água e sistemas hídricos complexos, o que constitui uma tendência perigosa do ponto de vista do equilíbrio ambiental.

? O senhor acha que haverá uma transformação nas diretrizes sanitárias, com mudanças na infraestrutura de coleta de lixo nas ruas e nas residências, por exemplo? 

O exemplo de Hong Kong, que já citei, indica o que pode acontecer agora, mas em escala maior. Lá, depois da Sars, houve mudança substantiva de normas construtivas, urbanísticas e sanitárias. É de se imaginar que alterações nos layouts dos espaços de trabalho devam ocorrer aqui também. A radicalidade dessas mudanças depende dos desdobramentos da doença, que ainda não conseguimos prever. Quanto à infraestrutura, vou me limitar a dizer que a simples universalização da rede de saneamento básico já seria uma grande conquista civilizatória para nós, brasileiros. A cólera em Londres no século 19 levou a uma modernização do sistema de águas e esgotos. Mesma coisa em Lisboa. Hoje, há diversas inovações que estão disponíveis no âmbito das redes de saneamento, todas desejáveis. Temos de resolver o básico antes de mais nada, que é atender com água, esgoto e coleta de lixo a metade da população do País que não ainda dispõe desses serviços. Essa é uma das grandes vergonhas brasileiras.

? O senhor imagina que, com o isolamento, as comunicações digitais podem mudar a forma como as pessoas interagem? E como o senhor vê questões como a proteção da privacidade digital? É possível, ainda, estabelecermos uma educação a distância qualificada?

Todas essas tendências das comunicações que você menciona – no trabalho, na educação e no convívio social – deverão seguir na mesma direção, apenas serão bastante catalisadas pelo episódio da pandemia. Algo que se revela com muita clareza hoje é o chamado hiato digital, a distância de possibilidades entre os que podem e os que não podem estar conectados, para estudar, trabalhar e se divertir. Há que se buscar todas as formas para eliminar ou ao menos mitigar essa outra manifestação da desigualdade. Quanto ao Big Data, penso que o acesso a dados é ferramenta fundamental de gestão de territórios, governos e sociedades. Como toda ferramenta, ela pode ser usada para o bem ou para o mal. Temos de tratar de direcionar a Big Data, a Internet das Coisas e a Inteligência Artificial para propósitos, produtos e causas socialmente aceitáveis, geradores de bem-estar coletivo. E com garantias de proteção da privacidade, num contexto de mais segurança digital.