04/04/2016 09:21 - Estado de Minas
Água Boa, Alto Rio Doce, Carmésia, Dores do Turvo, Malacacheta, Morro do Pilar e Paula Cândido – Os pneus do ônibus não têm mais nenhuma ranhura; rodam carecas, porque o motorista diz não valer a pena trocar de 15 em 15 dias e ter a borracha dilacerada pelas pedras afiadas e buracos do caminho. A porta ficou sem o vidro quando o condutor tentou desviar de uma cratera e atingiu um galho de árvore que não foi podado. Por causa do impacto, agora a porta só abre se alguém empurrar, e por isso muitas viagens são feitas com o vão aberto. O mesmo tipo de avaria deixou uma trinca de fora a fora no para-brisa. Na lataria, cada amassado e rombo conta a história de uma batida no barranco, fruto de escorregamentos na época das chuvas. A aventura de se trafegar pela MG-280, entre Dores do Turvo e Alto Rio Doce, na Zona da Mata, desencoraja a maioria a cumprir o trajeto, devido aos custos de manutenção e aos perigos iminentes, mas, no caso desses coletivos, parar não é opção. Neles, em vez de passageiros comuns são transportados 60 estudantes que dependem do veículo precário para chegar às salas de aula.
A saga desses alunos mostra os perigos pelos quais passa quem depende para sobreviver de rodovias que traçam pelo estado o mapa dos piores caminhos mineiros, retratados pelo Estado de Minas desde a edição de ontem. À primeira vista, a MG-280 – um caminho estreito de terra batida com buracos tão grandes que chegam a engolir as frentes de caminhões, valas tão fundas quanto degraus, pontes reparadas à base de improviso e muitos atoleiros – não parece uma rodovia. Mas é uma ligação primordial entre as regiões da Zona da Mata e dos Campos das Vertentes, por onde trafegam cerca de 700 veículos diariamente, razão de um a cada 2 minutos. Pode parecer pouco, mas o fato é que muita gente procura desvios para evitar as armadilhas da via, mesmo que praticamente tripliquem a viagem.
Mas, no caso de estudantes do ensino médio, não há escapatória, principalmente para os que moram no distrito de Abreus, que tem 2.200 habitantes e pertence a Alto Rio Doce. A MG-280 é o único meio que têm para chegar à escola estadual na sede do município. A viagem de 18 quilômetros dura uma hora, e em raros momentos o motorista Júlio Ribeiro de Souza, de 42 anos, consegue encaixar a terceira marcha – mesmo porque, a embreagem está tão impregnada de poeira que praticamente perdeu a função. “Já fiquei atolado aqui o dia inteiro, em uma situação em que nem trator conseguia tirar o ônibus. Os alunos acabam chegando atrasados. Tem dia que os professores não deixam os meninos entrar e a gente precisa intervir. Já falei para terem paciência com os moradores de Abreus, porque não tem outro caminho: são duas horas de ida e volta para fazer 36 quilômetros”, conta. O número crescente de reparos faz com que o ônibus precise rodar com muita precariedade, segundo o condutor. “Todos os dias tenho de dar alguma manutenção”, afirma.
A situação desses estudantes ilustra as dificuldades do trecho. “A viagem é péssima. Demora demais. A gente estava saindo de Abreus às 6h15, mas como sempre chegávamos atrasados, passamos a sair às 5h50, ainda no escuro. Sacode muito, é cansativo e chegamos exaustos lá (na escola). Nem dá vontade de ir à aula”, reclama Laís Faria Ribeiro, de 15. “Uma vez, a gente teve de voltar na carroceria de um caminhãozinho, porque tinha muito barro na estrada. Foram duas viagens para o caminhãozinho trazer todos de volta para casa. E ainda corremos muito risco de acidentes. O ônibus viaja tão cheio, que fica gente em pé, se segurando”, conta Jobert Aparecido Martins, de 16.
O motorista Júlio Ribeiro não acredita que tão cedo a situação vá melhorar. “Conforto? O conforto aqui é o mesmo de andar em carro de boi. Patrolamento e encascalhamento não adiantam mais, porque não duram mais de um mês. Essas máquinas que trazem só servem para comer dinheiro. A solução aqui é só uma: asfaltar.”
MG-280 e MG-232 estão entre piores rodovias de Minas Gerais; veja
A listagem de rodovias estaduais interrompidas ou com restrição de tráfego muda a cada temporada, quando caem barreiras, pontes cedem ou drenagens danificadas causam erosões. Mas, nessa relação do Departamento de Estradas de Rodagem de Minas Gerais (DER-MG), há três estradas – entre elas a MG-280 – nas quais nada de excepcional precisa ocorrer para que se transformem em desafios ao tráfego. Completam a lista dos piores caminhos do estado, na avaliação de especialistas e da população que cobra asfaltamento nos fóruns estaduais regionais mineiros, as rodovias MG-217 (Água Boa-Malacacheta) e MG-232 (Morro do Pilar-Carmésia). São vias que impõem castigos contínuos e avarias aos veículos, impedem o escoamento da produção agropecuária, tiram estudantes das salas de aula, isolam regiões inteiras, impedem tratamentos de saúde e emergências médicas. Para mostrar essa realidade, a reportagem do Estado de Minas percorreu vias que em certos casos são a única opção de tráfego para as comunidades que deveriam atender.
UNIVERSITÁRIOS E PRODUTORES RURAIS SOFREM COM AS CONDIÇÕES DA MG-280
Valas, pontes caídas e lama na MG-280 prejudicam uma população estimada em 150 mil pessoas na Zona da Mata, afetando alunos de várias federais, assim como produtores rurais
Alto Rio Doce, Dores do Turvo e Paula Cândido – Quando se pensa em comunidades cujos acessos principais são feitos por estradas de terra, a tendência é imaginar bolsões de pobreza e lugares afastados dos centros urbanos. Mas a terra que se transforma em atoleiros e buracos nos 40 quilômetros da MG-280 entre Alto Rio Doce, Dores do Turvo e Paula Cândido, na Zona da Mata, traz prejuízos a uma população estimada em 150 mil pessoas, de 12 municípios, segundo documento votado no Fórum Regional do estado, no ano passado. Pelo menos 50 mil litros de leite são transportados diariamente para seis laticínios passando pela estrada; estudantes das universidades de Barbacena e das federais de Viçosa (UFV), Ouro Preto (Ufop), Lavras (Ufla) e São João Del-Rei (UFSJ) também precisam desse acesso. “Não há hospitais na região, só em cidades como Ubá e Barbacena. Toda a comunidade vem sofrendo com essa situação, por isso reunimos mais de 3 mil assinaturas pelo asfaltamento. A comunidade fez seu dever. Se uniu e foi aos fóruns estaduais regionais, onde a demanda foi eleita prioridade, mas depois nos foi dito que não há recursos”, lamenta o padre Jorge Nato da Mata, que está entre as lideranças do movimento pelas melhorias da rodovia, ao lado de padres de Paula Cândido, Alto Rio Doce, Cipotânea, Senador Firmino, Divinésia e outros municípios.
Nas valetas por onde escoa a água da chuva, pedaços de para-lamas, para-choques, pneus cortados, para-brisas e outras peças de plástico, borracha e metal retorcido são vestígios de acidentes que deixaram muita gente no meio da MG-280. Uma das pontes da rodovia, sobre o Ribeirão Santo Antônio, não resistiu às chuvas de 2006. As águas derrubaram um dos pilares de sustentação da cabeceira e a ligação cedeu. Como não houve reparos, a solução encontrada pelo Departamento de Estradas de Rodagem (DER-MG) impressiona engenheiros: em vez de reconstruir a cabeceira, aterrou-se a ponte caída e limitou-se o tráfego de caminhões a 10 toneladas.
Da parte de baixo do córrego, a visão da ponte tombada e da terra jogada sobre a estrutura de concreto ainda dependurada passa a impressão de que os caminhões pesados que passam por lá vão cair. Enquanto a equipe de reportagem esteve no local, passaram veículos com brita, cargas de madeira e ironicamente até asfalto, que seria usado na pavimentação de ruas na cidade de Alto Rio Doce, todos eles excedendo o limite de peso. Alguns caminhoneiros passam devagar, olhando das janelas dos veículos se a ponte não vai apresentar abalo ou sinal de que vá ruir.
PRODUÇÃO
Os caminhões de leite e de transporte de mercadorias produzidas na região, como cachaça e carvão, precisam da estrada esburacada para chegar às fazendas e aos laticínios. Na rodovia, andar em linha reta é quase impossível, o que dá lugar a um lento zigue-zague para desviar de valas e depressões. “Em janeiro, por exemplo, tivemos de jogar fora nossa produção leiteira de 2 mil litros, porque os caminhões atolavam na estrada. Para não ficar no prejuízo, pegava o trator e levava o leite até a cidade, para fazer o transbordo. Começamos a usar o trator como único meio de chegar lá, mas estamos em um ponto em que até os tratores atolam”, afirma o produtor Alan Iatarola, de 28 anos.
A região de Dores do Turvo e Alto Rio Doce dá origem a cachaças muito apreciadas, mas a produção é prejudicada pela estrada. É comum ver pelas fazendas os tratores que puxam carretas de cana para as moendas e engenhos enfrentando dificuldade de tráfego. Os grandes desníveis e buracos constantes fazem esses veículos pularem o tempo todo, espalhando varas de cana pelo trajeto. Sem ter como recolher o material, o prejuízo vai ficando aos poucos pelo caminho. “A estrada é de suma importância para nós, produtores, mas os caminhões não conseguem passar pelos atoleiros. A estrada não tem tido qualquer apoio. Fazem manutenção só quando a situação é insuportável. Ano passado foi feito um retoque, mas não aguentou a primeira chuva, porque era cascalho muito fino”, afirma o produtor de cachaça Epitácio Oliveira Cardoso, de 57, que diz já ter precisado de dois tratores para desatolar um caminhão.
Empresa de ônibus desiste de trafegar
Na chuva ou na estiagem, o tráfego pela MG-280 é tão ruim que a única empresa de transporte que a percorria, a Unida, parou de circular em janeiro. “Não estávamos dando conta de cumprir o quadro de horários. A linha de Viçosa a Paula Cândido nos fazia gastar o dobro do tempo de viagem com desvios, transportando um terço dos passageiros”, justifica o representante da empresa, José Alfredo da Costa. Sem os ônibus, restou à população recorrer aos táxis, que também começaram a recusar viagens. “Estou até com meu para-choque quebrado, porque caí num buraco. Os ônibus deixaram os passageiros na mão, e por isso as pessoas estão procurando os taxistas. Mas temos muitos gastos com manutenção, e assim não compensa buscar gente na rodovia por preços acessíveis”, disse o taxista Helder Paulo de Campos, de 36.
Para não perder as aulas na faculdade de direito da UFV, que fica a apenas 64 quilômetros, o universitário Alexandre Rodrigues Lajes, de 20, teve de se mudar de Dores do Turvo para Viçosa. “Mesmo assim, ainda passo de quatro a cinco vezes por mês pela estrada. Se a gente tivesse uma rodovia boa, não precisaria morar em outra cidade, poderia ir e voltar todos os dias, porque é bem perto”, disse. Muitos estudantes que não têm condições de arcar com os custos de morar em outro município nem têm parentes com casas por lá acabam tendo de desistir dos cursos, pois chegam atrasados às aulas ou simplesmente acabam faltando, por não conseguir percorrer a via. “Tem grande desistência, muitos colegas deixaram de estudar por causa da precariedade da estrada”, disse Alexandre.
‘Se chove, não sai nada daqui’
Depois da região da Serra do Cipó e da Área de Proteção Ambiental do Morro da Pedreira, em Morro do Pilar, na Região Central de Minas, começa outra das piores rodovias do estado, a MG-232. Uma estrada com aparência de abandono, que não tem acostamentos e praticamente nenhuma sinalização. Partindo da cidade de Morro do Pilar, se envereda por curvas fechadas em torno de precipícios, passando por chapadas e vales. Corta, em sua maioria, fazendas e pequenas propriedades rurais de onde se escutam galos cantando e se avistam bois e cavalos nos pastos. A sensação de abandono da via não se resume aos buracos e atoleiros, mas também a estruturas sem manutenção, como pontos de ônibus de concreto que desabaram e não servem mais de abrigo. Crateras em aterros vão aumentando e ameaçam engolir a pista.
O pedreiro aposentado Paulo de Souza Silva, de 72 anos, mora há 15 na beira da estrada. “Se chove, não sai nada daqui. As subidas deslizam muito com o barro e não dá para passar. Tem buraco demais. O ônibus já ficou um punhado de vezes sem conseguir seguir viagem para Belo horizonte e teve de passar a noite no trecho. Quer resolver o problema de Morro do Pilar? Traz o asfalto para cá”, afirma.
O discurso oficial, contudo, tem afastado as esperanças de que municípios ligados pelas mais precárias rodovias regionais de Minas Gerais tenham essas estradas pavimentadas e ampliadas. De acordo com o DER-MG, “todo município mineiro atendido por rodovias estaduais conta com pelo menos um acesso pavimentado”. Contudo, nem sempre a via asfaltada corresponde ao que essas cidades necessitam. “Ter pelo menos uma ligação é ter uma opção, mas não significa ser a melhor ou a mais viável. De qualquer forma, a rede de rodovias mineiras pavimentadas ainda é muito pequena”, afirma o especialista em transporte e trânsito Silvestre de Andrade Puty Filho. Atualmente, são 18 mil quilômetros de vias pavimentadas e 6.327 em leito natural.
De acordo com o DER-MG, são realizados rotineiramente “serviços de manutenção, que incluem cascalhamento dos pontos críticos, roçada e nivelamento da pista de rolamento” das estradas citadas. “Dos trechos não pavimentados citados, informamos que a MG-217 – trecho Água-Boa Malacacheta – com 48,8 quilômetros, está com obras de pavimentação em andamento, com previsão de conclusão neste ano. Nela serão investidos R$ 69,9 milhões”, informou.