FT: Inflação e falta de peças freiam avanço do carro elétrico

16/05/2022 06:00 - Valor Econômico

Por Joe Miller, Peter Campbell e Patrick McGee — Financial Times, de Londres

As maiores montadoras do mundo alertaram que os problemas nas cadeias de abastecimento e os preços maiores das matérias-primas ameaçam o lançamento de veículos elétricos, mesmo com a demanda por modelos movidos a bateria superando a atual capacidade de produção dos fabricantes.

No seminário Future of the Car, promovido pelo “Financial Times” nesta semana, o presidente da Tesla, Elon Musk, lançou dúvidas sobre a capacidade de sua companhia de alcançar sua meta — definida há apenas alguns meses —, de produzir 20 milhões de carros elétricos por ano até o fim da década, chamando isso de “uma aspiração, e não uma promessa”.

“Podemos tropeçar e não alcançar esse objetivo”, disse Musk, que não costuma ser conservador, na conferência. “Estamos prevendo alguns problemas com matérias-primas, na produção de lítio, provavelmente em cerca de três anos, e na produção de catodos”, acrescentou ele.

Os comentários de Musk foram repetidos por vários outros líderes do setor no evento anual, em contraste com conferências passadas em que os executivos anunciaram metas de produção de carros elétricos cada vez mais ambiciosas.

Em 2021, mesmo com a escassez de semicondutores dando poucos sinais de diminuição, Ola Källenius, presidente da Mercedes-Benz, disse aos participantes que sua companhia “iria mais rápido” no que diz respeito à eliminação gradual dos modelos movidos a motores de combustão interna e na construção de alternativas elétricas.

Mas o tom no encontro desta semana foi bem mais reservado. Nenhum único grande executivo anunciou metas maiores para as vendas de veículos elétricos, ou produção de baterias. O concorrente mais próximo da Tesla, a Volkswagen, que há muito almeja superar sua rival nas vendas de veículos elétricos até 2025, minimizou suas perspectivas de alcançar essa meta, classificando-a de “muito, muito apertada”.

“Muitas pessoas estão agora, acredito eu, otimistas demais”, afirmou o presidente-executivo da Volks, Herbert Diess, referindo-se ao lançamento de veículos elétricos no mundo.

Falando do banco de trás do modelo mais recente de carro elétrico da Volks, uma versão livre de emissões da Kombi da década de 60, ele acrescentou: “Precisamos de energia, precisamos de redes de recarga, precisamos de infraestrutura, com certeza, precisamos de carros, mas também precisamos de baterias e matérias-primas.”

Segundo Diess, os analistas do setor não estão considerando “a quantidade de esforços necessária para fazer essa mudança acontecer para valer”.

Os alertas das duas maiores fabricantes de veículos elétricos surgem no momento em que o interesse dos consumidores por veículos elétricos continua superando as expectativas do setor.

Depois que a Volks, que pretende vender cerca de 700 mil veículos elétricos em 2022, revelou que esgotou os modelos a bateria nos Estados Unidos e na Europa pelo resto do ano, Källenius da Mercedes-Benz disse no seminário que “isso é em grande parte verdade para nós também”.

Musk disse que está pensando “zero em geração de demanda e muito na produção, engenharia e cadeia de suprimentos”, acrescentando que não descarta a compra de uma companhia de mineração para garantir as matérias-primas necessárias para acelerar a produção de veículos elétricos.

Os gargalos persistentes no fornecimento de matérias-primas cruciais para baterias moderaram as expectativas dos analistas para a indústria de carros elétricos como um todo.

Analistas do Wells Fargo, que esta semana examinaram os preços das matérias-primas para componentes do modelo Y da Tesla, constataram “várias ‘surpresas’ que desafiam a noção da adoção iminente dos veículos elétricos”.

“O aumento dos custos das matérias-primas para baterias adiou a paridade dos custos [dos veículos elétricos com os dos veículos movidos a motores de combustão interna] em pelo menos uma década”, alertou o banco, referindo-se ao momento em que os veículos livres de emissões se tornarão tão baratos quanto os equivalentes movidos a gasolina ou óleo diesel.

Como resultado, os analistas do Wells Fargo rebaixaram a General Motors e a Ford, uma vez que as montadoras americanas “provavelmente serão forçadas a vender conformidade com perda de dinheiro [veículos elétricos]”, para cumprir metas reguladoras cada vez mais rígidas.

A avaliação desses analistas foi correspondida pelo presidente-executivo da Renault, Luca de Meo, que disse na conferência do “Financial Times” que as crises nas cadeias de suprimentos significam que “o jogo mudou” e que as montadoras “precisam jogar pelas novas regras”, o que as tornará dependentes dos esforços das empresas de energia e mineração.

Ele alertou que o grupo francês poderá não alcançar a paridade de custos para os modelos intermediários até 2025, e que isso pode diminuir a demanda por carros elétricos. “Sabemos que o poder de compra das pessoas em muitas regiões do mundo não aumentará”, disse De Meo.

Ao mesmo tempo, subsídios generosos para compradores de carros elétricos na China serão eliminados até o fim do ano, tornando a mudança mais difícil para as famílias de baixa renda.

A Stellantis alertou que as baterias ficarão escassas em apenas dois ou três anos, complicando o lançamento de carros elétricos a preços acessíveis. “A velocidade com que todos estão agora construindo capacidade de produção de baterias está possivelmente no limite para suportar os mercados em transformação acelerada em que operamos”, disse o presidente da Stellantis, Carlos Tavares.

“Não estamos enfrentando essa transformação com uma abordagem estratégica de 360 graus”, acrescentou ele. “Todo mundo vai lançar carros elétricos no mercado. Então, o que vem depois? Onde está a energia limpa? Onde está a infraestrutura de recarga? Onde estão as matérias-primas?”

Para ajudar na crise das commodities, Källenius, da Mercedes, pediu à Europa que imite as estratégias de compra de matérias-primas implementadas pela China e os EUA e desenvolva “mais acordos comerciais bilaterais... além talvez das três regiões tradicionais”.

A União Europeia, disse ele, deveria procurar fechar acordos com países ricos em minerais, como a Austrália e a Índia, além de países sul-americanos, e criar relações mais próximas com “economias que podem ter algumas das matérias-primas de que precisamos para a eletrificação”.

Mas a maioria dos executivos concordou que os problemas do setor não desaparecerão rapidamente. “Isso é totalmente diferente do que eu dizia um ano antes, que estamos melhorando, estamos melhorando, um dia seremos perfeitos”, disse Aswani Gupta, diretor operacional da Nissan. “Para mim, hoje, a crise nas cadeias de suprimentos é o novo normal.” (Tradução de Mario Zamarian)