RIO - "Durante muito tempo ainda, deixe-se a várzea tal como está, com o gado solto pastando. E só quando a urbanização da parte restante, da Barra à Sernambetiba, se adensar; quando a infraestrutura, organizada nas bases civilizadas e generosas que se impõem, existir, e a força viva da expansão o impuser, aí então, sim, terá chegado o momento de implantar o novo centro que, parceladamente embora, já deverá nascer na sua escala definitiva”. O momento vislumbrado pelo arquiteto e urbanista Lucio Costa em 1969, época da criação do Plano Piloto para a Baixada de Jacarepaguá, começa a tomar forma. A área de quase cinco quilômetros quadrados — cerca de 10% da Barra —, destinada pelo autor para receber o Centro Metropolitano da Guanabara, virou um enorme canteiro de obras, onde sobem atualmente um shopping, um hotel e prédios comerciais. Passados 44 anos da aprovação da proposta do modernista para urbanizar a região, o lugar que ele queria ver como o novo Centro da cidade começa a entrar no mapa carioca com uma concepção diferente da que saiu da prancheta do urbanista, assim como ocorreu em grande parte da ocupação da Barra e arredores. E agora, embalado pela multiplicação de obras para os Jogos Olímpicos de 2016, esse Centro Metropolitano (res)suscita uma reflexão sobre o que foi desvirtuado do Plano Piloto.
Centro geográfico da Região Metropolitana do Rio, o terreno do Centro Metropolitano está nas mãos de grupos privados, que realizam projetos isolados. Mas, na cabeça de Lucio Costa, a área seria inteiramente desapropriada pela prefeitura e ocupada com edificações feitas num modelo similar ao de parcerias público-privadas.
— Ali, segundo Lucio Costa, seria o centro da cidade capaz de complementar o centro atual, que está, na verdade, numa ponta do Rio. Ele achava que a prefeitura colocaria ali sua sede ou um complemento de sua sede. Se você tivesse um novo downtown ali, não precisaria ir até o Centro trabalhar. Essa era uma base do plano — relembra o arquiteto e urbanista Hugo Hamann, que integrou o grupo de trabalho da Baixada de Jacarepaguá, responsável pela aplicação do plano, posteriormente transformado na Superintendência de Desenvolvimento da Barra da Tijuca (Sudebar).
Abrangendo uma área de 120 km² — seis vezes maior que a Zona Sul —, o Plano Piloto partiu da existência de um grande eixo que cruzava a região e não poderia ser alterado: a rodovia BR-101, que virou a Avenida das Américas. A concepção de Lucio é que ela se mantivesse como uma via expressa, sem sinais de trânsito e cruzamentos. Para viabilizar os retornos de carros e a travessia de pedestres, ele previu passagens de nível, dispostas a cada quilômetro, que nunca saíram do papel. O intervalo seria o mesmo entre os conjuntos de torres residenciais, criando uma alternância de volumes arquitetônicos com as áreas ocupadas por casas.
Esse balanço se manteve razoavelmente ao longo do desenvolvimento da região, já que os gabaritos foram com frequência esticados pela pressão imobiliária. Um dos exemplos claros é a orla, que deveria ter apenas prédios de cinco andares para não bloquear a visão do mar — a exceção seriam hotéis nas extremidades da praia —, mas, com o tempo, ganhou vários edifícios altos.
Para Hamann, um dos maiores ataques ao plano veio com a instalação da Cidade da Música (hoje Cidade das Artes), no cruzamento entre a Avenida das Américas e a Avenida Ayrton Senna, onde Lucio Costa previa um trevo rodoviário para conectar e distribuir o fluxo que viria da Linha Amarela quando ela ficasse pronta. Medidas como a construção de um mergulhão (já pronto) no local são vistas por ele como paliativas.
Não há dúvida de que tanto o conceito quanto parte do desenho originalmente traçados por Lucio Costa para a região foram se perdendo ao longo dessas quatro décadas. Uma mudança de rumos que levou o próprio autor do projeto a abandonar a Sudebar em 1981 e a declarar em entrevistas frases como: "Nem tenho lembrança de ter sido criador desse projeto”. Seguiu-se uma polêmica que levou a Câmara Municipal do Rio a constituir, em 1984, uma comissão especial de inquérito que concluiu ter havido deformações no plano.
— O conceito do Centro Metropolitano da Guanabara, que era para ser sede do governo, já se perdeu. E as terras são privadas (parte da Carvalho Hosken, parte da Teruskin e parte da CEF, em litígio). A Barra vem sendo ocupada em camadas, a partir da praia. Essa região foi ficando para depois porque é baixada, tem solo mais complicado. Mas chegou o momento dela, que pode ter aproveitamento misto — diz o arquiteto Edmundo Musa, que participou com o irmão, Edson, da equipe que projetou o Nova Ipanema e o Novo Leblon, entre os primeiros condomínios do bairro, e hoje trabalha em projetos como o do Hotel Hyatt, também na Barra.
Para Musa, no entanto, muito do plano foi respeitado:
— A Barra era um pouco idealizada por Lucio Costa. Mas noto que muita coisa deu certo. O plano inicial era muito sem detalhamento. Em uma folha de papel estava projetado todo o sistema viário do bairro. Depois, o professor Lucio Costa passou a publicar resoluções em folhas de mimeógrafo. O primeiro compêndio delas é o decreto 324. Só que o tempo solicitou, por exemplo, as ligações transversais. A Barra é carente delas. O progresso trouxe as estações de BRT na Avenida das Américas. Quem ia imaginar isso?
Ironicamente, de tempos em tempos, empreendimento imobiliários são lançados com o apelo de marketing do purismo evocado pelo Plano Lucio Costa.
— O que se observa é que empreendimentos retomam a bandeira do Plano Piloto, pelo que ele vende como valor. Como uma chancela de qualidade. Eu creio que não é mais possível falar em Plano Piloto, porque tamanhas foram as alterações, e elas acontecem há tanto tempo, que na realidade é muito difícil dizer que algo hoje corresponde rigorosamente às diretrizes do plano — opina o arquiteto Gerônimo Leitão, autor do livro "A construção do eldorado urbano: o Plano Piloto da Barra da Tijuca e da Baixada de Jacarepaguá, 1970/1988”.
O crescimento do bairro, segundo a prefeitura, levou a administração municipal a fazer o que considerava serem adequações. Entre os novos projetos, a Secretaria municipal de Obras cita a implantação do sistema BRT. Ainda segundo o órgão, um outro mergulhão será construído pela iniciativa privada em frente ao BarraShopping. Já na altura da Avenida Salvador Allende, foi construído um viaduto para melhorar a circulação. A prefeitura lembra, ainda, que algumas passagens de pedestres foram construídas na Avenida das Américas.
A Barra, que hoje é considerada a Miami do Rio, chegou a ser chamada de "Sertão carioca” pelo Correio da Manhã, em 1932. Lá, em 1959, avistou-se pela última vez uma onça-pintada em liberdade na cidade. Dezenove anos antes, a então fazenda de restinga de uma estrada de ferro inglesa não tinha mais do que cem moradores, além de jacarés e cobras. Só a partir dos anos 70, a região se tornou alternativa de moradia. O boom do bairro veio na década de 80. Segundo dados preliminares do Censo de 1980, entre 1970 e 1980, quando a população da cidade do Rio cresceu 21%, a da Barra aumentou 65% (de 31.057 para 51.299). Em 2000, de acordo com os mais recentes dados do IBGE disponíveis, o número de habitantes da Região Administrativa da Barra (que abrange, além da Barra da Tijuca, Camorim, Grumari, Itanhangá, Joá, Recreio dos Bandeirantes,Vargem Grande e Vargem Pequena) chegava a 174.353. Com isso, enquanto em meados dos anos 70 o número de carros que cruzavam diariamente a Avenida das Américas era de cerca de 19 mil (40 mil aos domingos), hoje passa de 135 mil.
— A expectativa da Copa do Mundo, das Olimpíadas, as obras viárias... Tudo isso fez a Barra voltar ao palco da expansão e da atração imobiliária, muito ligadas ao progresso. O bairro é grande, ainda tem muita coisa para acontecer lá. Até pouco tempo atrás, a Barra ia até o Carrefour. O resto era Recreio. A Benvindo de Novaes era Recreio. O autódromo, que era na Baixada de Jacarepaguá, agora é na Barra da Tijuca — avalia Rubem Vasconcellos, presidente da Patrimóvel. — É um bairro de coração grande. Ainda vai morar muita gente lá. Você compra um apartamento de cem metros quadrados na Zona Sul pelo preço que compraria um de 350 metros quadrados na Barra.
Centro Metropolitano
A área de quase 5 km² foi delimitada por Lucio Costa na forma de um octógono, cortado por dois grandes eixos viários e vias menores de circulação. Tanto esse desenho quanto os gabaritos estabelecidos por ele estão sendo respeitados, mas outros pontos devem se perder, como a criação de "plataformas interligadas por passarelas, para uso exclusivo dos pedestres, com terraços de estar e cafés”. Ele também vislumbrou que o Centro estaria integrado ao metrô e teria uma ligação por monotrilho com a Cidade Universitária e o Aeroporto Internacional.
Vias secundárias
De pelo menos 11 vias previstas, quatro não saíram do papel e duas foram parcialmente feitas (as vias 2 e 4, chamadas pelo arquiteto, de vias parque). Elas seriam contínuas e permitiriam o acesso aos conjuntos residenciais evitando a Avenida das Américas. A parte existente da via 2 é a Avenida Prefeito Dulcídio Cardoso, que deveria seguir até a Avenida Salvador Allende. O projeto do novo campo de golfe, no entanto, fica bem no caminho.
Plano paralelo
Para a área entre a Estrada dos Bandeirantes e o Canal do Urubu foram idealizadas residências para famílias com rendimento de três a sete salários mínimos. Segundo o arquiteto Gerônimo Leitão, dizia-se que o modelo criado para a Barra era excludente, e a ideia era que os empreendimentos populares fossem construídos com linhas de crédito do Banco Nacional de Habitação (BNH). O projeto do próprio Lucio Costa, que nunca foi adiante, era uma versão simplificada das superquadras de Brasília.
Gabarito
No plano piloto, o gabarito na Praia da Barra era de cinco andares. Apenas as extremidades da orla poderiam ser ocupadas por hoteis de gabarito maior. Os prédios em geral se tornariam mais altos em direção ao interior da região para não bloquear a visão do mar. Já fora da praia, foi idealizado e, em grande parte, concretizado o intervalo de um quilômetro entre núcleos de torres, alternados com áreas de casas, no eixo da Avenida das Américas. Algumas áreas, como a praia, no entanto, tiveram seus gabaritos deturpados com o tempo. Um dos fatores foi a pressão das construtoras. Em 1981, um decreto municipal alterou o gabarito e criou novas regras de parcelamento.
Avenida Ayrton Senna
Na Via 11, a atual Ayrton Senna, o plano previa uma arborização especial, a ser criada por Burle Marx. Entre a Avenida das Américas e o futuro Centro Metropolitano, seriam plantadas fileiras de palmeiras imperiais. Hoje, não há palmeiras e, no cruzamento com a Américas, foi erguida a polêmica Cidade da Artes. A construção inviabilizou o trevo rodoviário que Lucio Costa pretendia ter ali para conectar e distribuir o fluxo vindo da Linha Amarela, quando ela ficasse pronta.
Golfe
O plano previa reservar lugar para a "localização futura de um novo estádio, de novo prado, de nova hípica, de novos campos de golfe, e para instalação dos clubes que fatalmente surgirão”. O ponto escolhido para o campo de golfe fica num terreno da empresa Carvalho Hosken, até hoje desocupado, mas destinado a um empreendimento imobiliário já aprovado pela prefeitura, segundo a construtora. Se o campo de golfe tivesse sido criado ali, provavelmente o Rio não estaria às voltas com a polêmica em torno do campo para os Jogos Olímpicos. Pela proposta da prefeitura, o empresário Pasquale Mauro cederá lotes para a construção do campo na Avenida das Américas, próximo à clínica Riomar, e, em troca, o município autorizará parâmetros urbanísticos mais liberais para outros terrenos do empresário na região.
Feira permanente dos
estados
Também nunca foi adiante a criação de uma Feira Permanente dos Estados, que Lúcio Costa previa que ficasse na parte então desocupada da península do Autódromo de Jacarepaguá, onde agora será construído o Parque Olímpico dos Jogos de 2016. Segundo o plano, a região seria composta por uma "sequência de hemiciclos murados de diâmetro e altura variáveis, caiados de branco e dispostos de acordo com a posição relativa que os estados ocupam no país”.
Península
A Península e a área de cerca de km² que se estende dos fundos do shopping Via Parque em direção à Lagoa da Tijuca ganhariam projetos específicos orientados pela Sudebar. A primeira proposta para a Península, segundo o arquiteto Hugo Hamann, foi de autoria do arquiteto Sergio Bernardes: seriam 14 prédios circulares, com seis ou oito andares. O dono dos dois terrenos, Carlos Carvalho, conta que buscou na Justiça o direito de elevar o gabarito da Península invocando o princípio da isonomia, já que áreas próximas teriam direito a prédios mais altos. Depois de quase duas décadas de briga judicial, Carvalho conseguiu alterar os gabaritos: a Península tem hoje 109 prédios, de até 15 andares. Já o outro terreno, onde, segundo Carvalho, Lucio Costa previu o gabarito de cinco andares, começa a ser preparado para receber 80 edifícios de 12 pavimentos.
Ondas
O desenho de vias onduladas, cortadas por ruas oblíquas, deveria seguir até o Recreio, mas parou na Avenida Salvador Allende.