Por R$ 300, RG e carteira de motorista falsos são feitos em uma hora na Sé

16/10/2016 08:10 - Folha de SP

Os gritos que anunciam a venda de "foto 3x4" na praça da Sé escondem um crime: o comércio de documentos falsificados. Bem em frente ao Poupatempo, na praça da Sé, onde identidades oficiais são emitidas, um grupo vende RGs e CNHs (Carteira Nacional de Habilitação) fraudados.

Por R$ 300, uma pessoa pode se passar por outra ou mudar idade e número de identidade em menos tempo que o processo oficial paulista. O esquema no centro de São Paulo é procurado por adolescentes, que usam falsificações para entrar em baladas.

Com acompanhamento do departamento jurídico da Folha, a reportagem encomendou um RG e uma CNH para comprovar o esquema –os documentos serão entregues ao Ministério Público do Estado. Em 70 minutos e com uma foto de criança, uma jornalista maior de idade "virou" uma menina de 11. Esta repórter teve o nome e o de seus pais modificados. Bem-feitas, as cópias são elogiadas por peritos.

Para a compra, basta abordar alguns rapazes que anunciam a venda de fotos ou aqueles com coletes "compro ouro". Com uma cópia do original, uma assinatura numa folha em branco e uma foto 3x4, uma nova identidade é feita. "O papel é igual ao original. Não é original, mas é 80%", disse um dos vendedores. Outro mostrou o próprio RG: "O nome não é meu".

A negociação aconteceu em uma loja em frente ao Poupatempo, no nº 44 da rua do Carmo. As fotos 3x4 foram feitas ali. Um homem as levou, junto com as assinaturas e as cópias, para outro lugar e instruiu a repórter a aguardar na parte externa do Poupatempo. Ali, a segunda via de um RG é emitida por R$ 35,33 num prazo de até cinco dias úteis.

Setenta minutos depois, um gesto só com a cabeça, como quem diz "entre aqui", indicava que os documentos estavam prontos. Num canto da loja e com pedido de discrição, as falsificações foram entregues –"está 'embaçado' aqui por causa da polícia". Falsificar documentos, assim como seu uso, é crime, punido com reclusão de dois a seis anos e multa.

PERÍCIA

Um dos vendedores diz que o documento falso "passa a olho nu, mas não a laser". Ele se refere à luz negra utilizada para verificar a fluorescência. Para o perito Celso Del Picchia, as falsificações são as melhores que já viu. "O documento não resiste à perícia, mas não é facilmente percebido por leigos sem o equipamento adequado."

Para verificar a autenticidade do documento, Del Picchia recomenda observar o brasão no canto superior esquerdo com uma lente de aumento. As letras dos falsos não têm nitidez, mostra ele. Para o perito, a forma mais eficaz de coibir esse tipo de falsificação é adotando um documento único e com tecnologia mais avançada.

Uma lei de 1997 que criava um registro civil unificado nunca saiu do papel. Agora, o Congresso discute um novo projeto, proposto pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral) em 2015. O texto cria a Identificação Civil Nacional, com o CPF como número único e a biometria como meio para identificar os cidadãos, aproveitando a coleta do TSE.

O deputado federal Julio Lopes (PP-RJ), relator da proposta, diz que sua urgência será votada na terça (18), o que significa que o plenário pode votar o texto em 30 dias. Ele afirma que o custo será "insignificante", sem estimá-lo, porque a substituição de documentos seria feita aos poucos, quando expirassem. O delegado Amadeu dos Santos, do 1º DP (Sé), diz que a polícia conhece esse tipo de crime e o combate.

O departamento jurídico da Folha acompanhou desde o início todo o processo de produção da reportagem. A orientação dos advogados do jornal teve como objetivo documentar que o único interesse era jornalístico: revelar o esquema de falsificação de RGs e CNHs que existe em São Paulo e submeter os documentos a peritos, e não utilizá-los para fins ilícitos.

O RG com data de nascimento alterada e a CNH com nomes modificados serão entregues ao Ministério Público do Estado de São Paulo.

OUTRO LADO

A 1 km da praça da Sé, no casarão onde fica o 1º Distrito Policial, na Liberdade (centro), o delegado Amadeu dos Santos diz que os policiais têm ciência do crime de falsificação de documentos e que o combatem "diariamente".

"Não tem essa de 'ah, vamos investigar'. É direto", diz ele, citando números: em 2016, foram 24 ocorrências no 1º DP envolvendo documentos falsos na praça da Sé. Dos 24, 17 foram em flagrante. "A maioria de atestados falsos. Mas tivemos RG e CNH também", afirma, lembrando o caso de um jovem do 3º ano do Ensino Médio pego neste ano. "Ele comprou para ir a uma festa. Seu pai veio aqui bravo pra caramba."

A investigação, diz ele, é feita com policiais infiltrados que acompanham a negociação dos documentos falsos. "Muitas vezes, são pessoas que estão aí no meio da população. Não tem central onde você vá pegar uma pessoa com 50 espelhos de RG ou CNH. É muito pulverizado", afirma. O que dificulta, diz Santos, é que, para inibir flagrantes, os vendedores não carregam nada com eles. "Trabalham como formiguinhas."

Os falsários ficam em salas comerciais -só com um computador e impressora de boa qualidade, segundo o delegado. "Não tem uma grande estrutura ou um grande fornecedor de documentos." Além do trabalho da polícia, ele diz que é importante orientar menores a não adquirirem os documentos falsos, já que seu uso é crime.

Por meio de sua assessoria de imprensa, a Receita Federal informou que fez a integração de seus bancos de dados com a base do cadastro eleitoral do TSE, vinculando mais de 170 milhões de pessoas e passando a exigir o título de eleitor como documento obrigatório para inscrição de CPF, de modo a inibir fraudes.

O Instituto de Identificação Ricardo Gumbleton Daunt (IIRGD) informa que as cédulas de identidade reais contêm número do registro em vermelho, data de nascimento, nome e CPF gravados em negrito preto e código do posto responsável pela emissão inscrito ao lado da foto.

Tem ainda perfuração com a inscrição IIRGD entre a foto e a digital, marca d'água e película, código de barras e número de série dos dois lados do documento, que é produzido em papel moeda.

Jovens recorrem aos 'Felipes do RG' para ter falsificações em São Paulo

"Fiz com o famoso 'Felipe do RG'. Ele faz para metade de São Paulo", diz Fernanda, 17. O "Felipe do RG" é como são conhecidas há pelo menos três anos nas escolas de classe média da cidade as pessoas que vendem documentos falsos. Data de nascimento, nome e até número do RG e do CPF são modificados.

À Folha, o rapaz que fez as falsificações encomendadas não se identificou como "Felipe", mas disse que ali havia "pelo menos três Felipes". "Aqui todo mundo é Felipe", afirmou. Alguns jovens dizem que o vendedor chega a encontrá-los perto da escola para entregar as falsificações.

Em condição de anonimato, a Folha falou com sete jovens, de escolas como Gracinha –no caso de Fernanda–, Bandeirantes, Vértice, Santa Cruz e Porto Seguro, que compraram documentos falsos por meio do esquema em frente ao Poupatempo da praça da Sé. Todos os nomes citados nesta reportagem foram modificados.

"Fiz quando tinha 16. Todos os meus amigos tinham, sempre saíam e eu nunca podia. Resolvi fazer escondido dos meus pais", conta Amanda, que completa 18 no mês que vem. Ela estudou no Porto Seguro e agora está na faculdade. "Falei com um tal de 'Felipe' e ele fez para mim. Fui buscar perto de uma saída do metrô." Pagou R$ 200.

Ela diz que estava no segundo ano do Ensino Médio e que sempre havia festas para arrecadar dinheiro para a formatura. "Nessas festas, teoricamente só maior de idade podia entrar. Mas ninguém era, né." Também frequentou baladas na Vila Madalena (zona oeste) e formaturas. "Hoje eu não uso mais porque agora acho ridículo."

No caso de Patrícia, 18, que recorreu ao esquema quando tinha 16 e estudava no Porto Seguro, o "Felipe" buscou e entregou na escola os RGs dela e de amigos. "Mudei todos os meus dados", relata. Custou R$ 250.

O RG falso comprado por Gabriela, 20, há três anos, também foi entregue perto do Santa Cruz, onde a jovem estudava. Encontrou o rapaz no shopping Villa Lobos.

'*SUPERCORRUPTO*'

Caio, 19, diz que quando era menor de idade ele mesmo "fez no paint" para poder entrar em "alguns barzinhos" em Guarulhos (Grande SP), onde mora. Mas alguns amigos, conta, compraram seu RG falso na praça da Sé, pagando em média R$ 300.

"É um esquema supercorrupto. Hoje em dia não sei se faria", diz Giovana, 18, que fez seu RG falso há dois anos. "O pessoal [das escolas] passa o contato um para o outro", diz ela, que estudou no Bandeirantes. Na época, seus amigos foram buscar o documento falso em uma estação de metrô, depois de terem ido ao local em frente ao Poupatempo para levar os documentos necessários. "O RG passava até na luz negra."

"Comprei porque queria ir para as baladas, nem era questão de bebida. Óbvio que lá dentro eu bebia, mas o principal era entrar, porque com 16 anos, na minha cabeça, quem ia para balada para maiores de idade era 'cool' e maduro", diz Lívia, 18, ex-aluna do Vértice. Ela conta que é comum alunos fazerem o documento em grupo pois fica mais barato –sempre com a "gangue lá no centro".

A falsificação de documento, assim como seu uso, é crime, punido com multa e reclusão de dois a seis anos. Caso prestem auxílio aos filhos, os pais podem ser penalizados. "Todavia, a responsabilização também ocorrerá caso os pais tenham conhecimento da prática dos crimes e não ajam de modo a impedi-los", diz a advogada criminalista Débora Pimentel.

Segundo o Subprocurador-Geral de Justiça do Ministério Público de São Paulo Mário Luiz Sarrubbo, os menores pegos com documentos falsos costumam ser advertidos seguindo o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) -a internação serve para autores de crimes com violência ou reincidentes.