Quando as empresas de ônibus eram próximas dos passageiros…, por George André Savy

16/05/2022 07:35 - Jornal de Jundiaí

O que vem à mente quando se fala “empresa familiar?” Uma empresa pequena ou média, onde os funcionários são como membros da família proprietária. Todos se conhecem a fundo, participam religiosamente de todas as atividades profissionais e paralelas… enfim, onde a confiança mantém todos ali por anos, décadas… até chegar a aposentadoria. Este cenário era comum no Brasil até os anos 80, inclusive nas empresas de ônibus, rodoviárias e urbanas. Neste texto vou focar nas urbanas.

Nas grandes e médias cidades, nas décadas de 60 e 70, o transporte municipal era dividido por vários pequenos empresários, onde cada um atuava em determinada região. Só na capital paulista, eram em torno de 80 empresas, pequenas e médias, que dividiam a cidade com a CMTC, da prefeitura. Havia espaço para todos. Também havia, logicamente, problemas, como em todos os lugares, claro. As cidades crescem e o sistema vai necessitando de ajustes. E nos ajustes no meio empresarial, os maiores, mais fortes, com mais estrutura, sobrevivem. Os demais fecham as portas ou são comprados pelos maiores. Isso se mantém até hoje, embora com outras formas no “jogo”.

Aquele conceito “familiar” mudou muito, num ponto de praticamente ficar invisível. Impossível visualizar hoje o relacionamento interpessoal presenciado naquela época, em parte devido aos atuais mecanismos virtuais. Não se vê mais chefes pelos pátios, conversando com funcionários. Agora é tudo pelo objeto que todos carregam no bolso… ou pelas câmeras onipresentes, sejam nas dependências da empresa, sejam nos veículos. Junto a essa tecnologia, o fim de várias funções. Nos ônibus, a mais sentida foi a dos cobradores. E não tem jeito, pelo fato das pessoas estarem cada vez mais substituindo as cédulas por cartões, bilhetes. No mundo todo é assim, por que no Brasil seria diferente?

A praticidade é defendida pela maioria, para não dizer por todos. Quem não gosta de praticidade? De resolver tudo num clique, num encostar do bilhete numa máquina validadora? Nem mesmo a catraca as pessoas gostam. Aquele empecilho, trambolho no meio do veículo, nas entradas das estações… mas aqui entra um ponto interessante a se observar. A educação de um povo, a honestidade, o caráter.

Em 2017 estive em Portugal. Lá os ônibus urbanos não possuem catraca. Os passageiros embarcam com o bilhete e o validam na maquininha instalada num posto atrás do motorista. Ficou registrado no bilhete do passageiro que ele pagou a passagem naquele momento. O passageiro guarda o bilhete. Não há cobrador nem catraca, a máquina no veículo que faz a contagem dos passageiros. E se o passageiro não quiser pagar? Não paga, mas está correndo risco de ser abordado por um fiscal que entre no ônibus em qualquer ponto na cidade, ou já esteja dentro do ônibus, como um passageiro comum. O fiscal, dentro do ônibus, vai conferindo também com um aparelho detector, cada bilhete dos passageiros embarcados. Se detectar alguém que não pagou, a multa é aplicada na hora. Algo impensável no Brasil. Por quê?

Primeiramente, questão de educação. Brasileiro, em sua maioria, leva à risca aquela chamada “lei de Gerson”, de levar vantagem em tudo. Por mais fiscais que houvesse, não dariam conta, seria uma verdadeira guerra a campo. Depois, no próprio setor de transporte, hoje mesclado entre interesses monopolistas e órgãos públicos (prefeitura e estado), quanto menos funcionário, mais interessante aos dois lados. Na “cultura do trabalho” neste país, para não ficar sem o emprego, muitos aceitam o sobrecarregamento de funções. Observem que, além da ausência de cobradores, há cada vez menos fiscais. E os poucos existentes são sobrecarregados. O que favorece também ao desleixo na função e até à corrupção entre muitos.

Neste ponto, constatamos que a tecnologia veio para ajudar mas não eliminou as más práticas, o oportunismo, o “levar vantagem em tudo” e muito menos a exploração da mão de obra em terras brasileiras. Tudo é muito rápido, acelerado, algo que esta nova geração adora, mas deixa brechas para o oportunismo. E acaba prejudicando os veteranos, principalmente aquela parcela da população com menos conhecimento em inclusão digital, aplicativos… afinal, há anos que o poder público deixou de investir na inclusão digital do povo, principalmente a população mais idosa. A justificativa é “a família ensina, sempre há quem ensine”.

Retornamos à palavra “família”. Empresa familiar. Como está o ambiente familiar neste novo século? Fala-se muito ultimamente com viés político. Mas como está a relação entre pessoas, quando a tecnologia afastou os olhos nos olhos, a confiança? Por trás das telas, muita coisa dita e escrita não é sincera. Está mais fácil, digamos, se esconder. Lembram-se dos empresários nos pátios, nas garagens, nas oficinas? Agora não saem mais dos escritórios. Fiscais? Para quê se há câmeras? Embora as câmeras não impeçam a criminalidade. Aqui um ponto interessante, falando em Brasil, o país do vandalismo. A presença dos cobradores nos ônibus inibia as ações de vandalismo. Mais que cobrar, os cobradores auxiliavam os motoristas em muitas tarefas. Auxiliavam os passageiros. Inibiam as arruaças dentro dos veículos. Agora temos câmeras. De enfeite, porque os vandalismos continuam. E não há pessoas peritas em usar as imagens das câmeras para identificar tantos vândalos diários.

Temos aqui um retrato atual das empresas de ônibus. Todas distantes dos passageiros. A tecnologia, que facilitou contatos, na verdade afastou as relações humanas. Abundam aplicativos, que por serem eletrônicos, podem falhar num determinado momento. Onde estão as pessoas? Lá atrás, antes de sequer imaginar o mundo virtual, sabíamos até nome dos funcionários. O nome do motorista de nossa linha, dos cobradores. Havia bom dia, boa tarde, boa noite. Até bate-papo com os cobradores. Era “a família”, que ia além das garagens, das empresas e estava nas ruas da cidade. Jundiaí nos anos 70 tinha cinco empresas de ônibus. Os usuários conheciam o nome de cada uma, identificavam os veículos delas pela pintura, nem precisava saber ler, o passageiro identificava sua condução pela cor. Pelo motorista. Ah sim, a cidade era menor. Havia menos ônibus. Passado, não é? A cidade cresceu, veio a tecnologia. E a evolução. Evolução que, como já citado, proporcionou agilidade em certos aspectos e prejuízos em outros. A inclusão digital forçada, que não atinge a todos. O sobrecarregamento aos poucos fiscais e aos motoristas, que precisam cumprir horário num sistema de transporte que prioriza “veículos novos” e não consegue adaptar a cidade ao crescimento (trânsito, mobilidade, sistema viário). Por fim, a nebulosa relação entre o mundo empresarial das empresas de ônibus e grupos políticos. Com o predomínio da visão que “transporte municipal é transporte público”, passou-se a associar as operadoras urbanas a cada gestão, às prefeituras. Se ninguém mais conhece o motorista de sua linha, muito menos o dono da empresa operadora e até mesmo o nome das operadoras, que cada vez mais, menos aparecem nos veículos, sobressaindo a logomarca das prefeituras e do órgão público gerenciador do sistema. Sutilmente, o estado vem penetrando cada vez mais no setor privado de transportes, facilitando a monopolização e provocando um certo relaxamento nos serviços, já que na opinião pública não é o nome da empresa que está em jogo e sim o poder público, que justifica “não haver necessidade de concorrentes, de duas, três, quatro empresas já que o órgão público gerenciador garante a qualidade”… (risos…)

Fazendo o histórico do setor de empresas de ônibus nas últimas 40 décadas, até o mais leigo no assunto percebe como essa área foi monopolizando. Oitenta empresas de ônibus na capital nos anos 70, passou para aproximadamente 20 na reformulação do sistema na gestão Olavo Setúbal, em 1978. As pequenas empresas que sobreviveram se uniram em consórcio. Mas até aí tudo bem, era uma época onde nas prefeituras havia técnicos, com alto grau de conhecimento em cada área. O sistema da capital implantado em 1978 foi o melhor em comunicação visual, onde os passageiros ainda identificavam as operadoras e as regiões de operação. Ficaram as melhores, mais estruturadas, que por serem concorrentes, cada uma buscava um diferencial para ganhar o passageiro. Em Jundiaí, em 1979, uma das empresas inovou com a compra de ônibus equipados com rádio FM, proporcionando música aos passageiros durante a viagem. Detalhes que o setor rodoviário, em boa parte ainda livre das amarras políticas, tenta conquistar os passageiros com diferenciais e qualidade na prestação dos serviços. Resta saber até quando, já que os tentáculos políticos neste nosso Brasil continuam se expandindo, se infiltrando sutilmente no setor privado, principalmente de transportes. Na capital, se havia 20 empresas na década de 80, hoje há o predomínio de menos de dez grupos, que estão se beneficiando através dos conchavos políticos. Nas cidades do interior, a monopolização já domina.

Não se trata de saudosismo e nem devemos viver de saudosismo. O mundo evolui, a tecnologia avança. A questão é como esta evolução vem sendo feita. O que virá pela frente nessa marcha do individualismo, do afastamento das relações humanas, substituída por uma vigilância que não garante segurança e muito menos mudança de comportamento no combate às más práticas, ao vandalismo, à criminalidade. A comunicação, tão ampla, irrestrita neste mundo virtual, não está surtindo os efeitos desejáveis, construtivos, que 40 anos atrás, com todos os problemas da época, proporcionavam, com resultados muito melhores. O velho jornal impresso, os informativos, os jornais murais das empresas (cheguei a elaborar um), traziam mais resultados positivos que toda esta comunicação virtual e os tais aplicativos. Creio que o ambiente, o clima familiar de outrora esteja realmente fazendo falta. Talvez você leitor não esteja ainda percebendo essa falta, mas perceberá daqui algum tempo… dependendo de como esta marcha for conduzida… e os tentáculos políticos interferirem na área.

George André Savy- Técnico em Administração e Meio Ambiente, escritor, articulista e palestrante. Desenvolve atividades literárias e exposições sobre transporte coletivo, área que pesquisa desde o final da década de 70.