Raquel Rolnik : "A moradia deixou de ser um direito humano"

05/09/2016 08:29 - A Tarde (BA)

"Como ousa uma brasileira vir aqui opinar sobre a política habitacional do Reino Unido?". Foi com frases como essa que membros do Partido Conservador britânico, no poder desde 2010, reagiram às observações da urbanista Raquel Rolnik, 60, então relatora especial para o direito à moradia adequada das Organização das Nações Unidas (ONU), cargo que ocupou entre 2008 e 2014. Professora da Universidade de São Paulo e ex-secretária nacional de programas urbanos do Ministério das Cidades (2003-2007), sob a gestão de Lula, Rolnik vem denunciando o que chama de processo de "financeirização" da moradia: a transformação de um direito humano num mecanismo de geração de lucros para empresas. Um processo descrito por ela em relatórios para a ONU, conferências e no livro Guerra dos lugares: A colonização da terra e da moradia na era das finanças (Boitempo), lançado no último dia 22 em Salvador, no auditório da Faculdade de Arquitetura da Ufba. No caso do Brasil, o programa Minha Casa, Minha Vida seria o representante dessa lógica, funcionando, segundo Rolnik, como "uma política industrial que beneficia, ao fim, bancos e construtoras". Nesta entrevista à Muito, ela fala sobre moradia adequada, políticas habitacionais realizadas no Brasil e o direito à cidade.

No livro Guerra dos lugares, a senhora afirma que a moradia urbana passou por um processo de "financeirização". Isso também vale para as políticas de habitação promovidas pelos governos?

Sim. Mas é preciso ter em mente que esse é um processo global. E toda vez que falamos de algo global, olhamos para uma tendência. Essa tendência acontece de forma singular em cada uma das regiões. De forma geral, estamos falando de uma mudança de paradigma dentro das políticas de habitação no mundo: a passagem de uma moradia vinculada a um direito social, promovido pelo Estado, para uma moradia totalmente calcada no mercado, promovida por empreiteiras e bancos. Essa mudança contou com uma participação ativa dos governos no sentido de disponibilizar e fomentar o crédito hipotecário, acessado pelas pessoas para comprar suas casas. Começou a acontecer na Inglaterra de Margaret Thatcher e nos Estados Unidos de Ronald Reagan. Houve a privatização do estoque público de moradias. Um exemplo: os mais pobres passaram a ter acesso a empréstimos bancários que garantiram a entrada deles no mercado imobiliário, ao mesmo tempo em que as políticas públicas de habitação começaram a ser desmontadas. O Estado destruiu qualquer política de moradia que não fosse o fomento à compra da casa própria.

Como a moradia passou de direito a ativo financeiro no Brasil?

No Brasil, historicamente, a política habitacional foi capturada pelo mercado financeiro. Isso está presente desde o modelo do Banco Nacional da Habitação (BNH), implantando nos anos 1960. O modelo era pegar um fundo público - o FGTS - e emprestar esse fundo para que empresas e construtoras comercializassem unidades habitacionais, sob o argumento de que, depois de um tempo, essas empresas e construtoras iriam recompor o fundo público. Ou seja, já começamos com uma distorção na política de moradia. A pergunta não foi "quais são as necessidades habitacionais dos brasileiros?", mas "que produto podemos oferecer para que as pessoas comprem?". Desde o começo, a política habitacional brasileira foi tributária - a compra da casa própria produzida por construtoras, acessada via crédito.

O programa Minha Casa, Minha Vida foi moldado pelas regras do mercado imobiliário?

A era Lula foi em direção à financeirização. No modelo do Minha Casa, Minha Vida (MCMV), você tem empresas que produzem um produto regulado pelo Estado. E o Estado subsidia o comprador, para que ele possa adquirir o produto. Esse é um modelo cuja origem remonta ao Chile de Pinochet. As construtoras que se engajaram no MCMV, para produzir unidades de habitação em massa, foram aquelas que abriram capital na bolsa de valores, captaram dinheiro em fundos de investimento internacional. Os fundos de investimento entraram com tudo nesse segmento econômico de moradia. O MCMV é a exacerbação máxima de uma lógica de mercado, tanto é que o programa foi pensado para ser uma ação de fomento à indústria da construção civil, num momento de crise econômica.

Mas esse é um programa de inclusão social para milhões de brasileiros e, também, uma fonte de lucro para as empresas envolvidas no processo. Sob esses dois aspectos, é um sucesso, não?

O programa tinha alguns objetivos: gerar empregos, impedir que a crise viesse e criar lucro político. Nesse sentido, ele é um sucesso total. Agora, do ponto de vista das nossas cidades, do direito à moradia e à cidade, é relativo esse sucesso. O MCMV tem um elemento inovador e importante. Pela primeira vez se usou subsídio para fazer com que a moradia pudesse chegar a quem precisa mais. Esse aspecto está na faixa 1 do programa, focado em famílias com renda baixíssima. E esse é o único elemento positivo desse programa. Qual é a minha crítica: trata-se de um modelo único de provisão de moradia, com a construção de casa própria individual para compra. Política de casa própria nunca foi e nunca será a melhor alternativa para populações extremamente vulneráveis - pode ser uma alternativa para populações que tenham uma renda estabelecida e possam permanecer no imóvel. Para famílias sem estrutura, com renda quase zero, não faz sentido se transformar em proprietárias de um ativo que vale muito dinheiro. Outro lado perverso é que o MCMV tem sido usado para remover assentamentos informais que estão em áreas bem valorizadas das cidades. O MCMV não é política habitacional, mas sim uma política industrial que beneficia, ao fim, bancos e construtoras.

Como o poder público poderia buscar alternativas, então, para sanar a falta de moradias nas metrópoles brasileiras?

Há uma equação famosa entre urbanistas: existem seis milhões de pessoas sem moradia adequada e cinco milhões de casas e apartamentos vazios no Brasil. Claro que essa é uma matemática simples, mas que ajuda a enxergar a questão. Quando a gente anda por Salvador, por exemplo, fica se perguntando por que todo esse estoque de sobrados e casas construídas e desabitadas não é mobilizado para uma política habitacional. Por que não trabalhar com um aluguel subsidiado, no lugar do fomento à compra da casa própria? As metrópoles brasileiras têm um estoque de imóveis públicos gigantesco. Então, uma medida seria a reabilitação desses imóveis vazios e subutilizados. Outra medida: num país de pedreiros, o Estado poderia prover uma construção assistida, fornecendo assistência técnica para que as pessoas realizassem a construção de suas casas. Um programa que demandaria pouquíssimo dinheiro. Em suma, o importante é diversificar as nossas políticas de habitação e não focar num modelo único, de compra da casa própria.

Quando se fala em trocar a casa própria pelo aluguel há, também, uma barreira cultural a ser enfrentada…

A trajetória dos brasileiros é, de forma geral, de muita insegurança em relação à posse. Há tanta insegurança que todo mundo quer a escritura na mão. Essa cultura tem a ver com a trajetória de insegurança, e ela reforça a seguinte constatação: nós somos um país de posseiros. Mas a figura da posse, apesar de estar inscrita na Constituição Brasileira, não vale nada na prática. Não tem um juiz que, na hora de um enfrentamento de um conflito fundiário, reconheça o direito à posse como um dos elementos formais do direito brasileiro. Isso apenas reforça a ideia de que só a propriedade individual e registrada é que vale no nosso país. Daí a gente entende a hegemonia da cultura da casa própria entre os brasileiros. Mas, quando você começa a ofertar outras possibilidades reais de moradia, através de políticas públicas, essa cultura é capaz de se transformar.

A senhora acompanhou a reorganização urbana no Rio de Janeiro para sediar a Olimpíada. Como a analisa o impacto das obras sobre a população?

Para explicar minha opinião em relação ao Rio de Janeiro, posso utilizar a imagem de um elefante. O rabo do elefante é o que ficará para a população. O projeto do Porto Maravilha, por exemplo, vitrine das recentes intervenções urbanas, implicou pegar um espaço que tinha 70% de área pública, passar esses terrenos e imóveis para o capital financeiro e, assim, abrir uma nova frente de expansão urbana.

A revitalização da zona portuária do Rio de Janeiro não segue um caminho oposto à tendência de privatização dos espaços públicos?

Quando você vai até lá e passeia pelo porto, vê que os cariocas ganharam um espaço público. Isso é ótimo. Mas esse foi um projeto que pegou oito bilhões de um fundo público para entregar à população uma linda praça para passear. Uma linda praça para passear poderia acontecer com 10 milhões, 20 milhões. O que esses oito bilhões produzem e o que está por trás deles? Por que entregar 70% de terra pública para o capital financeiro? E há o método: o processo de construção do Porto Maravilha foi 100% discutido fora dos espaços públicos de negociação. Foi uma proposta modelada pela (empreiteira) OAS e entregue à prefeitura do Rio. E não foi objeto de nenhum debate público na cidade. O megaevento, como a Olimpíada, permite que essas operações possam acontecer com mais facilidade. Esse é o legado que ficará. O argumento é que a cidade também ganhará um BRT e uma nova linha do metrô. Mas quem disse que a prioridade de mobilidade era ligar o centro do Rio à Barra da Tijuca?

A senhora foi secretária nacional de programas urbanos do Ministério das Cidades durante o governo Lula. Como avalia os efeitos da era petista em relação à política urbana?

Eu participo das administrações municipais do PT desde os anos 1980, nos tempos heroicos em que o partido ainda não tinha feito a opção por um pragmatismo a qualquer preço. Quem faz um pacto com o diabo depois precisa cumprir o trato. E isso foi particularmente sensível na política urbana, porque ela historicamente foi dominada pelos setores que utilizam o espaço urbano como um negócio. O pagamento desta fatura é a implantação de políticas públicas que sejam destinadas a fomentar esses negócios. O grande problema do PT, na minha opinião, foi achar que era possível conciliar essa política de mercado com a política de distribuição de renda e inclusão social. E isso, como nós vimos, não é possível.

O que espera do Ministério das Cidades do governo Temer?

Na minha opinião, essa visão da cidade como um negócio deve ser aprofundada. A solução interina foi promover uma operação de identificação de tudo que se acha horroroso e nojento no PT para poder continuar fazendo a mesma a coisa: o comando da política pública transferida para os negócios. O revés é que agora vem sem a parte "desagradável", que é a distribuição de renda. O corte já aventado no programa Minha Casa, Minha Vida, em relação à faixa 1, é típico desse modelo. Vão tirar a parte destinada aos mais pobres e ficarão com o resto. A ideia de que o Estado é desnecessário será aprofundada.

Nos últimos anos, vimos surgir no Brasil diversos movimentos que buscam discutir o direito de ocupação da cidade - o Ocupe Estelita, em Recife, o Movimento Parque Augusta, em São Paulo, e o Movimento Passe Livre, que teve Salvador como embrião. Estamos assistindo ao surgimento de uma nova consciência sobre o direito à cidade?

Acredito que sim. Eu tive o privilégio de participar do último ciclo de lutas sobre o direito à cidade antes desse, que aconteceu nos 1970. Foi num momento em que as vilas, as favelas e os bairros começaram a se organizar, lutando por reconhecimento e pelo direito a ter direitos. Agora, localizo nos anos 2000 o começo de um novo ciclo de lutas dessas comunidades. No centro desses movimentos acredito que está o direito de decidir sobre as políticas públicas e sobre que projeto de cidade se quer. E isso acontece em um momento em que a decisão sobre as cidades está muito distante dos fóruns públicos hoje existentes. Certamente, esse novo ciclo de lutas vai gerar também novos agrupamentos políticos. Penso que estamos assistindo ao início de um processo de renovação política.