A saga do ônibus - Rashomon (1º capítulo)

19/02/2018 11:30 - Claudio de Senna Frederico



O filme Rashomon do diretor Akira Kurosawa foi lançado em 1950 com grande sucesso em vários festivais e uma menção honrosa no Oscar e é considerado um dos grandes filmes de todos os tempos. Apresenta um crime em que três pessoas participam e um quarto, o lenhador, presencia escondido. No julgamento, as versões são completamente diferentes, inclusive a do morto que testemunha através de um médium. Como seria de se esperar, cada um tem uma explicação mais favorável para sua participação no evento e bem diferente da dos outros. O surpreendente é que até mesmo a testemunha oculta, supostamente desinteressada, fornece um quarto relato e mais tarde aparece como tendo se aproveitado do crime. Diferente da maioria dos demais filmes em que essa mesma trama foi utilizada, em Rashomon a verdade não é fornecida ao espectador. Nem mesmo ao final, evitando preencher a angústia das pessoas que sempre exigem uma única verdade e um culpado, de preferência com reputação e aparência adequada a seu papel de vilão.

A situação do transporte público por ônibus nas cidades brasileiras parece fazer parte de um roteiro muito semelhante ao utilizado para o filme Rashomon. Ninguém tem dúvidas de que um “crime” foi praticado e que diversos grupos da sociedade estão envolvidos. Existem até alguns que se apresentam como “observadores neutros” ou testemunhas e que costumam fornecer explicações muitas vezes baseadas em percepções ou prevenções. Há até mesmo, desde logo, culpados de plantão, que nesses casos são preliminarmente apontados e sempre trazidos para “interrogatório”.

Vamos “reconstituir” o nosso crime do transporte público brasileiro e procurar pelas contradições dos testemunhos sobre as faltas atribuídas a cada um dos agentes participantes.

O crime aconteceu, o que pode ser constatado em alguns fatos que não parecem oferecer maiores dúvidas e que são:

O serviço prestado é julgado como de baixa qualidade, tanto por seus usuários quanto por outros que não se utilizam dele e que atuam como o lenhador escondido que parece não querer se envolver, mas observa. Além disso seu preço é considerado alto demais, tanto em função da renda de seus usuários quanto pela sua baixa qualidade. Tudo isso parece ser prova de que o poder público é comandado pelo interesse privado dos operadores e permite a baixa qualidade e os preços altos sempre reajustados por interesse deles empresários.

Neste parágrafo já aparecem diversas contradições que seriam questionadas em um bom julgamento como o do filme.

Em primeiro lugar, o vilão escolhido, o empresário, não é acusado de incompetência, ou seja, sabe muito bem como prestar um bom serviço e um indício desta afirmação é que são em geral os mesmos que operam linhas rodoviárias que são consideradas aqui e no exterior exemplos de qualidade e confiabilidade. A pergunta, portanto, é: por que uma mesma empresa que obviamente procura a rentabilidade de seus investimentos escolhe obtê-la prestando um mau serviço na cidade e um bom serviço nas rodovias?

Os administradores do poder público, por sua vez, têm como principal objetivo manter-se no poder através dos votos, inclusive os desses mesmos passageiros insatisfeitos. Não seria melhor para isso que os empresários oferecessem um serviço de qualidade, já que quem paga por ele são os mesmos passageiros?

Finalmente, ao fim desse emocionante primeiro capítulo do “De ônibus para Rashomon” perguntamos: Seriam eles todos suicidas? O que mais está envolvido na obtenção da tal qualidade do serviço de ônibus do que a “vontade política” e as más intenções dos fornecedores? Quais são os obstáculos? Quem atrapalha e como os fatores negativos podem ser realinhados para podermos enxergar uma luz no fim do túnel?


No próximo capítulo:

Dilema do garçom – a limonada Suíça

O que é isto? O que foi pedido? Quem pediu?


Claudio de Senna Frederico - consultor e membro do conselho diretor da ANTP, além de Vice-presidente.