30/11/2016 14:30 - ANTP
Um pesquisador perguntou a uma professora da rede pública da periferia de São Paulo por qual motivo ela não caminhava até a escola onde lecionava, já que a distância de apenas 2 quilômetros de sua casa não justificava qualquer modo de transporte motorizado. A resposta foi simples: porque já fora assaltada duas vezes.
A insegurança pública, consequência natural de cidades excludentes, juntou-se à insegurança viária como fator definidor de escolha: muita gente não caminha “apenas” por falta de calçadas (ou calçadas ruins), mas por medo de ser assaltada ou assediada. A opção pela bicicleta, outro modo afetado pela insegurança nas cidades, vê-se vítima hoje da junção do risco do acidente ao medo da violência decorrente de furtos.
As mulheres adultas e as meninas sofrem mais por conta do assédio. Pesquisa recente, encomendada pela organização não-governamental ActionAid, mostra que o Brasil apresentou o pior resultado entre quatro países (Brasil, Tailândia, Índia e Reino Unido): quase nove de cada dez mulheres adultas no país, moradoras de áreas urbanas, sofreram algum tipo de assédio. O levantamento aponta também que está no Brasil a maior percentagem de mulheres que sofreu o primeiro assédio antes mesmo dos 10 anos de idade. Como consequência, muitas dessas brasileiras recorreram a estratégias para se protegerem: 17% passaram a evitar o transporte público. À má qualidade do transporte soma-se agora o medo de ser assediada.
A violência é uma das facetas mais visíveis de cidades que decidiram alargar ruas ao invés de melhorar e ampliar suas calçadas. São cidades que optaram por desenhos urbanos que privilegiam o isolamento no automóvel ao invés de estimular e permitir o encontro de pedestres. A agorafobia tornou-se (não é de hoje) a doença do cidadão moderno: temos medo de estar em espaços abertos ou entre pessoas que não conhecemos.
Junte-se a isso a pressa urbana e teremos uma cidade hostil. Uma cidade impermeável e obstaculizada, sem locais de encontro ou convivência, sem opções de lazer e descanso para idosos, nem local onde crianças possam circular e brincar. As consequências para a saúde – física e mental – são evidentes e já mensuráveis.
As crianças tornam-se as maiores vítimas. Uma pesquisa realizada por uma agência de pesquisa de marketing (Edelman Berland), que analisou a rotina de mais de 12 mil crianças em dez países (entre fevereiro e março de 2016) – dentre os quais o Brasil –, aponta que 56% das crianças passam uma hora ou menos brincando ao ar livre; 20% passam 30 minutos ou menos; e 10% nunca brincam fora de casa. Qual o resultado desse confinamento no crescimento infantil?
Uma cidade onde as pessoas não se encontram, não conversam, não trocam experiências, nem possuem locais de convivência e lazer, é a cidade que privilegia a exclusão, que prescinde do humano como fator de animação. Os espaços públicos se tornaram domínios de segregação e exclusão. Não há misturas de hábitos, nem de culturas. Os iguais preferem se reunir em busca de uma vivência privada e de sua autoproteção. O diferente torna-se inimigo, algo a ser excluído e apartado e contra quem se devem erigir barreiras de segurança.
Philip Yang, fundador do Urbem (Instituto de Urbanismo e Estudos para a Metrópole), ressalta o significado do termo inglês Nimby - iniciais de "Not in My Backyard" (no meu quintal, não). Philip conta que a língua inglesa define Nimby “como a atitude de oposição ao estabelecimento de algo tido como indesejável ou perigoso nas cercanias de onde residem os reclamantes”. Ele cita o recente caso de moradores de Higienópolis, bairro em São Paulo, que se opuseram à implantação de estações de metrô em sua vizinhança. É o apartheid social, uma força crescente no processo de urbanização das cidades brasileiras. É a negação à cidade humana e amigável; logo, um estímulo à violência e à intolerância.
A dicotomia entre o óbvio a fazer - ditada pelo conhecimento - e o nada a fazer, aconselhada pelo frágil equilíbrio de forças políticas sem representatividade, tem tornado nossas cidades cada vez mais inviáveis. Soa estranho ouvir técnicos e políticos de outros países contarem como conseguiram alterar o perfil de cidades mundo afora. E como conseguiram produzir cidades amigáveis recuperando, alterando e democratizando o uso dos espaços públicos. O contraste com as escolhas que nossos gestores fizeram ao longo de décadas – e insistem em manter intactas - é brutal.
Quando o arquiteto dinamarquês Jan Gehl afirma que o planejamento urbano deve ajudar a “criar cidades para as pessoas e a escala humana deve ser a prioridade”, aplaudimos entusiasmados. Mas nossa realidade escancara nossa incapacidade irremovível de produzir mudanças em nossas próprias cidades que, muitas vezes, são pontuais, apesar de emblemáticas. O que temos feito para melhorar a vida na cidade de idosos, crianças, gestantes e deficientes? Por que as cidades excluem os mais vulneráveis, optando por priorizar justamente quem menos precisa de apoio e proteção?
O ex-prefeito de Nova York, Michael Bloomberg, disse certa feita que o serviço público lhe oferecera “a incrível oportunidade de fazer a mudança real onde você vive, de impactar a vida de milhões de cidadãos e de transformar as ideias dentro das cabeças de burocratas do governo sem inspiração”.
Caberia ao político realizar a mediação entre a técnica e os anseios dos cidadãos, em busca de cidades amigáveis, sem exclusões. O que se vê é o oposto - a política perdeu sua capacidade de canalização e gestão das demandas sociais, e optou por privilegiar grupos de interesse (a maioria escusos e excludentes) em lugar dos interesses comuns à maioria dos habitantes das cidades. As composições politicas - feitas por representações que já não mais representam, sacrificam a técnica, subvertendo o conhecimento acumulado em benefício de privilégios há muito superados em inúmeras cidades mundo afora. A questão da velocidade em detrimento da segurança é um exemplo único e poderoso.
Não é de hoje que as pessoas vêm buscando exílio na reclusão, negando o convívio mútuo, dado essencial de qualquer ajuntamento humano. A esfera do privado como local seguro tem se contraposto aos espaços públicos nas cidades (locais de risco e perigos). Espaços que deveriam ser abertos a todos têm se tornado fatores de ameaça constante, servindo de falacioso argumento para replicar espaços de reclusão e encapsulamento: condomínios fechados; apartamentos com aparatos modernosos de segurança; escolas particulares e shoppings privados (um veto à socialização); carros imponentes e com vidros escuros, como uma extensão pelas ruas das próprias moradias.
Qualquer projeto de mobilidade urbana deve partir dessas reflexões: como tornar a cidade melhor para os cidadãos mais vulneráveis? Parece óbvio que uma cidade boa para crianças e idosos será sempre uma cidade boa para todos.
Insegurança pública e mobilidade urbana são inimigas brutais. Quanto mais violenta a cidade, mais carros se espremerão nas ruas a exigir mais e mais espaços de ruas e menos cuidados com as calçadas; mais pessoas irão se encapsular em condomínios e shoppings renunciando ao uso livre e coletivo da cidade.
O resultado final nós já temos ao alcance da vista. Ainda é possível evitar o pior.