'Ferrogrão' traz à baila uma governança engripada

18/11/2017 08:00 - Frederico Bussinger

Pontos-chave:

1)     O MPF vem de “recomendar” a anulação das Audiências Públicas da “Ferrogrão”.

2)     Na bem elaborada peça toma-se conhecimento de quase um outro governo, autônomo, dentro do território que conhecemos como Brasil.  Quiçá um outro estado.

3)     Que paradoxo! Mundo afora projetos ferroviários são cada vez mais frequentes e ambiciosos. No Brasil é difícil, quase impossível, levá-los adiante.

4)     A “Ferrogrão” pode ser, só, a próxima vítima. Outros projetos ferroviários, hidroviários, rodoviários e portuários podem seguir a mesma sina.

5)     Parodiando a esfinge: decifra-me, ou te imobilizo; Brasil!


 

“Decifra-me ou te devoro!”
[Esfinge]

A expectativa era grande com relação ao início do processo licitatório para concessão da “Ferrogrão” (EF-170), uma das espinhas dorsais da acalentada e genericamente denominada “Saída-Norte”: alternativa logística para escoamento da produção do Centro-Oeste. Uma aparente quase unanimidade tem agora futuro sombrio com a recente “recomendação” do Ministério Público Federal – MPF para “anulação” das Audiências Públicas agendadas pela ANTT: 22/11 em Cuiabá/MT, 27/11 em Belém/PA e 05/12 em Brasília/DF.

Recomendação”? Quase um eufemismo! A Recomendação nº 12 do MPF, de 7/NOV/2017, dá prazo para adoção de providências, faz advertências e, até, brande ameaças de responsabilização por “improbidade administrativa”.

Trata-se de um texto esmerado; em português correto e compreensível. Tem construção lógica bem articulada. Premissas, análises, conclusões e enquadramentos se entrelaçam milimetricamente, como naqueles quebra-cabeças (“puzzles”) de milhares de peças. Transita entre uma tese acadêmica e um didático documento doutrinário. Quase um “template”, um formulário para ser preenchido sempre e quando necessário ser obstaculizado o andamento de projetos infraestruturais; mormente “greenfields”.

O texto, em si, é assinado por 3 Procuradores do MPF em Itaituba-PA. Mas, caprichosamente, sistematiza enunciados e bordões de textos acadêmicos, manifestos e bandeiras de movimentos e entidades autointituladas ambientalistas ou preservacionistas; nacionais e internacionais.

Por ora é ainda uma peça administrativa. Mas, como uma “Espada de Dâmocles”, deixa no ar a possibilidade de um processo judicial específico e/ou a encorpar o Inquérito Civil Público
nº 1.23.008.000678/2017-19; já em andamento.  

Para (bem) além do seu objetivo específico, todavia, e ao longo de suas 10 páginas de considerandos, recomendações e advertências vai-se tomando conhecimento da existência quase de um outro governo, autônomo, dentro do território que conhecemos como Brasil.  Quiçá um outro estado a par da República Federativa do Brasil – RFB. A saber:

Em posição superior ao arcabouço legal e normativo, praticamente mimetizando a Constituição Federal, está posta a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT (que, segundo a “Recomendação”, “possui status normativo supralegal”). Ela é coadjuvada pela Convenção Americana de Direitos Humanos – CADH” e a Declaração Americana sobre Direitos dos Povos Indígenas.

A par do Poder Executivo, estão colocados os representantes dos “povos interessados” (ou “comunidades e povos tradicionais”, em outro trecho) e de “comunidades que, a partir de suas próprias percepções, sinalizem a ocorrência de impacto”: Isso mesmo: “a partir de suas próprias percepções”!Todos com “poder de decisão” e “direito de escolher suas próprias prioridades” (algo almejado pela maioria dos cidadãos da RFB; não?).

A par do processo de licenciamento ambiental a que todos os cidadãos, órgãos e empresas brasileiras estão submetidos, desenvolvido paulatinamente a partir da Lei nº 6.938, de 31/AGO/1981, a “Consulta e Consentimento Livre, Prévio e Informado – CCLPI”. E, esta, não apenas na “primeira decisão”; mas “em cada ato administrativo que autoriza o prosseguimento da política pública” (“cada ato administrativo” está grifado e negritado na “Recomendação”!). No lugar dos órgãos de fiscalização, regulação e controles da RFB, a “Relatoria Especial da ONU sobre Direitos dos Povos Indígenas”.

No mais das vezes o texto é claro, explícito, preciso e fundamentado. Mas, aqui e acolá, inclui termos subjetivos e conceitos amplos a demandar interpretações (e reinterpretações) futuras e/ou caso a caso. São “ganchos” sempre disponíveis para serem utilizados a qualquer momento; sempre e quando se quiser bloquear processos. P.ex.: i) a caracterização dos interlocutores (“povos interessados” ou “comunidades e povos tradicionais” – abrangendo-se “indígenas, beiradeiros, ribeirinhos e agroextrativistas”); ii) a motivação da consulta (“na medida em que afete suas vidas, crenças, instituições e bem-estar espiritual, bem como as terras que ocupam ou utilizam de alguma forma” – incluindo-se, para tornar a definição ainda mais imprecisa, terras “que não estejam exclusivamente ocupadas por eles, mas às quais, tradicionalmente, tenham tido acesso para suas atividades tradicionais e de subsistência”); e iii) forma de consulta (“procedimentos apropriados” e “válida manifestação de vontade”).

Até os contornos geográficos não são objetivamente definidos; nem sequer têm critérios objetivos para defini-los; como pode ser observado na “Recomendação”: “A Portaria Interministerial nº 60/2015... presume interferência de empreendimentos em terra indígena a uma distância de 10km, presunção que, em hipótese nenhuma, exclui a realização de estudos para definir áreas afetadas e que estejam a uma distância maior”.

Alguns poderiam arguir que os pilares desse outro “governo”, desse “estado” paralelo à RFB são diplomas internacionais – o que procede. Mas essa é uma verdade parcial; visto que eles foram recepcionados pelo nosso arcabouço jurídico: a OIT nº 169 pelo Decreto nº 5.051, de 19/ABR/2004; e a Declaração Americana sobre Direitos dos Povos Indígenas pelo Decreto nº 678, de 6/NOV/1992.

A dimensão e implicações institucionais e constitucionais desse imbróglio é tema para longos debates de juristas, magistrados e políticos. Mas ele tem, também, questões e implicações práticas e imediatas. Duas, p.ex.:

1.     Uma ferrovia normalmente tem centenas de quilômetros (1.142 km, no caso da “Ferrogrão”). E ela só faz sentido se for implantada em sua totalidade (ou por trechos que lhe garanta uma mínima funcionalidade); é curial! Ao longo do seu trajeto é possível haver inúmeros “povos interessados” (19, neste caso, segundo o MPF). O que fazer se alguns “decidem” em favor da implantação da ferrovia e outros não? Como encaminhar?

2.     Suponha-se que uma “primeira decisão” teve a concordância dos “povos interessados”. Suponha-se, também, que a ferrovia foi posteriormente concedida: há, pois, um concessionário que tem tanto o direito como o dever de implantar o projeto/empreendimento outorgado. E suponha-se que os “povos interessados” não concordem com um determinado ato administrativo para “prosseguimento da política pública” (a ser efetivada através da implantação do projeto/empreendimento). O que fazer? Como proceder? De quem é a responsabilidade por eventuais prejuízos decorrentes?

Não teríamos produzido um paradoxo? Ou seja: ferrovia, é quase consenso, é um modo de transporte de alta eficiência energética, baixa emissão (gases de efeito estufa e particulados), seguro, amigável ao entorno, etc. etc. Mundo afora têm-se notícia de projetos cada vez mais ambiciosos. Todavia, no Brasil, com a governança que pouco a pouco foi sendo desenvolvida, difícil vislumbrar-se caminhos que viabilizem a implantação de novos trechos ferroviários (“greenfield”).

Talvez não seja outro o motivo de haver, no Brasil, cerca de 2 dúzias de projetos ferroviários nas prateleiras; desafiando clamores, discursos, promessas... e demandas reprimidas!

O irônico é que essa governança, engripada, tem se mostrado tremendamente eficaz para interditar iniciativas dos poderes executivos da RFB; nos seus 3 níveis. O mesmo não se pode dizer, p.ex., em relação à implantação de pistas de pouso em reservas; tampouco no tocante a estradas, atracadouros, e garimpos clandestinos; p.ex. Teriam os “povos interessados” se manifestado sobre suas implantações? Ou são essas as “prioridades” resultado de seus “poderes de decisão”? Elas foram “escolhidas” por meio de uma CCLPI?

No plano conceitual, ademais, estimulando a confrontação e praticando um tipo de “Fla-Flu”, essa estratégia aponta em sentido oposto aos objetivos da sustentabilidade, balizada pela ideia de balanço, como fim, e compatibilização e composição, como meio.

Será que os negociadores brasileiros, nas conferências internacionais, tinham consciência de que os acordos que aprovaram poderiam nos levar a processos decisórios tão complexos, imprevisíveis e de frágil segurança jurídica? Será que os parlamentares tinham tal consciência ao aprovar a incorporação dos diplomas internacionais ao ordenamento jurídico brasileiro? Será que presidentes e ministros que ocuparam cargos nas últimas décadas tinham consciência de que o resultado final de seus atos seria a governança que hoje temos?

A “Ferrogrão” pode ser, só, a próxima vítima. Outros projetos ferroviários podem estar na fila de espera para serem bloqueados. Projetos hidroviários, rodoviários e portuários (para ficar só no campo da infraestrutura logística) de igual forma, vez que suas governanças são similares.

Será que não haveria outro arranjo, outra governança capaz de, simultaneamente, atender os respeitáveis valores, cultura e prioridades dos “povos interessados”, sem obstaculizar a implantação de ferrovias e projetos infraestruturais congêneres? Seria esse o único caminho?

Parodiando a esfinge: decifra-me, ou te imobilizo; Brasil!

Frederico Bussinger - Consultor. Foi Secretário Municipal de Transportes (SP-SP) e Secretário Executivo do Ministério dos Transportes. Presidente da SPTrans, CPTM, Docas de São Sebastião e CONFEA. Diretor do Metrô/SP, Departamento Hidroviário (SP) e CODESP. Presidente do Conselho de Administração da CET/SP, SPTrans, RFFSA, CNTU e Comitê de Estadualizações da CBTU. Coordenador do GT de Transportes da Política Estadual de Mudanças Climáticas (PEMC-SP). Membro da Comissão Diretora do Programa Nacional de Desestatização.