A Educação como Mecanismo de Compreensão da Problemática Urbana

13/03/2016 21:30 - Rosana Soares Néspoli

Ensaio Crítico apresentado no Curso de Gestão da Mobilidade Urbana da ANTP

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A educação é o eixo fundamental para a conversão de mecanismos de atuação e de efetivação de políticas públicas em qualquer parte do mundo.

 O Brasil tem se mostrado ineficiente nesse quesito e parece desconsiderar tais exemplos nos contextos de realidade local. E não se trata de imitar e reproduzir acriticamente os modelos estrangeiros em nosso meio educacional, mas de investir na qualidade do ensino e estimular uma atitude pedagógica de natureza participativa, problematizadora, problematizante, interpelante que provoque aquele aprende a partir do contexto de realidade, uma vez que experiências não se inventam, se vivem.

Esta atitude pedagógica deve ser percebida na dinâmica educativa aplicada a qualquer situação, seja por parte dos professores que ensinam na educação formal, seja por parte dos médicos que orientam sobre saúde, dos dentistas que ensinam sobre prevenção e higienização dental, dos nutricionistas que orientam dietas, dos economistas que ensinam finanças, dos dirigentes sindicais que ensinam direitos (e deveres) dos trabalhadores, dos integrantes de organizações e movimentos sociais (ecologistas, feministas, etc.), dos animadores culturais que abordam temáticas diversas, dos agentes pastorais que atuam nas comunidades locais, seja por parte dos arquitetos que ensinam sobre planejamento urbano, seja por parte dos educadores de trânsito.

O que importa é a forma de ensinar baseada em um modelo de educação que dê ênfase ao processo e não somente aos conteúdos, a partir de uma interação dialética entre as pessoas e a sua realidade. É uma visão de mundo que dá valor à pessoa na relação com sua comunidade, a partir do desenvolvimento de suas capacidades intelectuais e de sua consciência social.

É preciso incorporar princípios novos que não estão nos textos clássicos e que contém um grande número de exemplos e passar a enriquecer o processo de ensino com base nas vivências, inferindo delas consequências de ordem individual e coletiva, estimulando a busca de soluções para o bem comum.

As cidades individualizantes e predatórias resultam de administrações de improviso, da desintegração de políticas públicas no âmbito das esferas governamentais, de um mercado imobiliário interessado no resultado para manter suas metas de negócios sem compromisso com um planejamento urbanístico que atenda a questão social, dentre outros componentes desse circuito, tendo no modelo de educação vigente o necessário apoio para manter a opacidade de seus efeitos e a paralização.

Nesse sentido, parece importante aclarar qual concepção subjaz as práticas de ensino e de aprendizagem quanto ao entendimento da dinâmica das cidades, uma vez que dessa compreensão resultará um novo processo educacional, capaz de estimular um cidadão reflexivo o bastante para se tornar instrumento de transformação dentro de uma metrópole.

Tradicionalmente, temos ensinado crianças e adultos o quanto a rua é perigosa, o quanto é difícil atravessar a rua, quais são os cuidados mínimos que uma mãe, um pai, ou um adulto devem ter ao atravessar uma criança.

Há toda uma educação familiar para impedir que as crianças vão à rua porque a consideram perigosa.

E por que a rua é perigosa?

A rua é perigosa devido à quantidade de carros e a sua dinâmica de movimento intenso. É perigosa devido à massa do veículo e à velocidade que o torna um grande causador de danos.  Uma colisão entre um carro e uma pessoa é extremamente desigual. Em determinada velocidade nada acontecerá ao motorista, mas ao pedestre renderá danos físicos, lesões e até morte em razão do impacto. Por isso tudo, a rua é hostil.

Ocorre que todo processo educativo escolar tem atuado no sentido de ensinar quais são os sinais e de que maneira usar a sinalização. É como se a rua pertencesse aos automóveis e que toda a comunidade tivesse que se adaptar a esse modo de uso da via. O modo de uso da via é este, dizem os ensinantes! Há carros em alta velocidade que tem prioridade nas travessias, por isso, tome cuidado! Há um tempo maior de espera para travessia nos cruzamentos porque os carros precisam “passar”, portanto, adapte-se a isto!

Paradoxalmente, a educação para o trânsito amparada pela pedagogia tradicional, colaborou ao longo de muito tempo para ampliar o afastamento das pessoas das ruas, dada a característica de um ensino com ênfase nos conteúdos em detrimento de um modelo pedagógico que enfatizasse o processo, sustentando uma construção cultural de que é melhor andar de carro do que andar na rua; é melhor levar as crianças de carro até a porta da escola do que andar na rua para chegar até ela.

Também sobre ensinamentos de uma visão tradicional da sociedade que construiu crenças quanto ao uso da bicicleta. Na rua? Nem pensar! Quer andar de bicicleta? Faça nos corredores da casa, dentro do condomínio, ou em dia de domingo, preferencialmente no parque. Cunhou-se a idéia de que lugar de bicicleta é no parque, deixando de conceber a rua como um ambiente que deve favorecer todas as pessoas a andarem com segurança, inclusive de bicicleta.

Então, esse processo cultural deriva de uma decisão das instituições educacionais sobre o modelo de educação que negligencia o ensino de conteúdos relacionado à dinâmica das metrópoles, com a aquiescência da sociedade em permitir que esse movimento e que esse modelo de vida se instalasse na cidade, ou seja, que a cidade se tornasse “a cidade do automóvel” e, portanto, inóspita para as pessoas.

Desse ponto de vista, o processo educativo precisa ser “destrinchado”, precisa ser “conhecido” por todos de modo que a atitude de dividir (compartilhar) a rua e dividir (compartilhar) as calçadas seja compreendida dentro de um processo cultural representado pelo avanço do automóvel.  

É preciso compreender que na medida em que foi aumentado o espaço para a entrada de automóveis na via, foi diminuído o tamanho das calçadas com diminutos espaços de circulação à beira do ridículo, se comparadas ao tamanho da rua dedicada ao tráfego de veículos, e ainda, prejudicadas pela existência de barreiras, postes, placa e toda sorte de obstruções que demonstram a ausência do poder público em relação à proteção ao pedestre.

O carro foi engolindo o espaço público amparado pelas políticas urbanísticas das cidades que propiciaram ruas mais largas, sincronização de semáforos e uma quase espetacular infraestrutura favorecedora do uso do automóvel que, historicamente, permitiu o aumento nas velocidades e de energia cinética enorme, totalmente desfavorável à pessoa que pretende compartilhar a rua.

Diante desse contexto, cria-se na criança desde bebê, a idéia de que não se pode sair à rua, que a rua é perigosa e que a rua não é lugar para as pessoas. Reforça-se a concepção de que é melhor sair de carro por ser mais seguro e que é melhor ser levado na porta da escola, pois assim haverá “mais segurança”. No entanto, sabe-se que esta crença vem na contramão das novas concepções acerca do compartilhamento do espaço coletivo, qual seja, quanto mais gente caminhar pelas ruas e quanto mais pessoas circularem pelas calçadas, mais haverá uma sensação de segurança entre elas, de um reconhecimento, de um sentido de pertencimento e de uma familiaridade do local. Isto é o que a rua deveria ser e esse é o processo que precisa ser ensinado. As crianças e os jovens precisam aprender porque perderam seu espaço de circulação e porque houve o avanço do automóvel sobre o espaço público. Precisam reconhecer os efeitos das propagandas automobilísticas que incentivam cada vez mais as pessoas a terem carro, aumentando esse desejo, em detrimento da qualidade de vida.

Esse processo educativo precisa ser reinstalado nos programas de educação para o trânsito nas escolas, ou seja, é possível ter a bicicleta na rua, é possível ter calçadas melhores, é mais seguro se os carros circularem de forma mais lenta. Para tanto, é necessária uma pedagogia que estimule, ensine e encoraja uma visão crítica sobre a cidade.

Não se trata de lado o ensino de regras e conceitos sobre o uso da via para, tampouco criar a crença de que a rua é uma maravilha, mas de oferecer a compreensão de que todos têm direito a esse espaço e, por essa razão, o calçamento deve ser melhor, a urbanização deve ser melhor, o projeto para a circulação das pessoas deve ser melhor.

Nesse sentido, a reflexão em torno de modelos de educação provoca igualmente a formação do adulto condutor, hoje, também pautada na pedagogia tradicional que dá ênfase aos conteúdos e que se incumbe em ensinar a condução do veículo, deixando de analisar o real contexto da rua que “está lá” para atender a várias outras necessidades. A formação do condutor requer um modelo de educação baseado no processo, de tal sorte que promova necessária reflexão que permita descaracterizar a cultura individualista de que a prioridade é do carro ou de que o condutor possui mais direito que os outros nas ruas, clarificando que o espaço ocupado por um único carro em movimento na via pública pode significar o espaço ocupado por um ônibus capaz de atender 40 pessoas. Esta abordagem atitudinal dentro do processo de ensino e aprendizagem é simples e permite reconhecer que toda vez que um carro sair à rua estará consumindo muito mais espaço do que consome uma pessoa que utiliza o ônibus, compreendendo que há um uso desigual da rua. Portanto, quando esse condutor tiver que compartilhar esse espaço com o ônibus entenderá o que significa o processo de equidade e junto dela, a responsabilidade pelo terceiro, isto é, a existência do ciclista, a existência do pedestre que são os mais vulneráveis.

É certo que o desenvolvimento da sociedade precisa assegurar que as pessoas construam habilidades, destrezas instrumentais e conhecimento conceitual, ao mesmo tempo em que necessitam conhecer o espaço que as rodeia de modo que possa desenvolver consciência crítica e protagonizar ações transformadoras mediante diálogo, debate e espírito solidário.

Rosana Soares Néspoli - Pedagoga e Psicopedagoga, mestrado em Novas Tecnologias da Informação e da Comunicação pela Universidade de Madrid, com pós-graduação em Cultura e Novos Meios de Comunicação; cursa especialização em Economia Urbana e Gestão Pública pela PUC-SP. Atualmente, é Gerente da Escola Pública de Trânsito do DETRAN-SP.

 

Bibliografia:

Zabala, Antoni. A Prática Educativa. Artemed,  Porto Alegre – 1998.

São Paulo, Governo. Secretaria dos Transportes Metropolitanos – Visões da Metrópole: depoimentos sobre transporte e urbanismo para o PITU RMSP 2025. FUPAM, SP, 2006.

Kaplun, M. Pedagogia de Comunicação. Projeto Didático Quirón, Madri, 1998.

São Paulo, Governo. Câmara Municipal de São Paulo. Ciclo de Debates Pensando São Paulo. São Paulo. Escola do Parlamento, 2012.