Como o sistema público perdeu a batalha do transporte

18/03/2017 11:00 - Adriano Murgel Branco


Uma rápida análise dos problemas que a Região Metropolitana de São Paulo e, em particular, a Capital vem enfrentando no campo do transporte urbano e, consequentemente, do trânsito, mostra um desvio de rumos incompreensível. Em 1900, a Cidade foi dotada de moderno, eficiente e ecológico sistema de bondes, que permitiu ao paulistano trocar o bonde de tração animal e as carruagens, por tecnologia muito mais avançada.

Mas, 20 anos depois chegaram os ônibus e, com eles, a concorrência predatória aos bondes. Paralelamente, os automóveis engrossaram a dificuldade.

Em 1936, a Prefeitura de São Paulo baixou os primeiros regulamentos para frear as dificuldades já evidentes. E, em 1941, decidiu elaborar um grande plano de transportes, concluído em 1943. As dificuldades provenientes da guerra mundial e a desistência da concessionária dos bondes em dar continuidade aos seus serviços retardaram as medidas de ordem prática decorrentes do Plano. Somente em 1947 a municipalidade criou a CMTC, como concessionária monopolista de todos os modos de transportes que, em pouco tempo realizou grandes iniciativas, comprando ônibus modernos e implantando o transporte por trólebus.

Mas a alegria durou pouco. Em 10 anos as dificuldades de transporte e trânsito voltaram, dando oportunidade ao surgimento de empresas irregulares de ônibus e ao aumento da frota de automóveis, cuja importação crescia, ainda que lentamente. Duas tentativas de construir sistemas de metrô – uma baseada em monotrilho (1957) e outra em metrô convencional (1960) foram à licitação, mas não deram em nada. Nos anos seguintes, com o advento da indústria brasileira de veículos, a opção pelo automóvel cresceu rapidamente e as frotas de ônibus clandestinos se ampliaram.

Procurando avaliar as causas do congestionamento, a Prefeitura contratou estudos, em 1958, que mostraram claramente que as origens do problema estavam na desestruturação dos transportes e, mais ainda, que os custos da lentidão do trânsito e suas conseqüências atingiam cifra equivalente a uma vez e meio o orçamento municipal! Pela primeira vez, um estudo de tal natureza procurou ainda avaliar a perda de produtividade da população submetida ao mau transporte e às agruras do congestionamento do trânsito.

A despeito de um preciso diagnóstico dos problemas da mobilidade, pouco ou nada se fez nos 10 anos que se seguiram. Em 1967 tentou-se uma grande reformulação do trânsito, calcada na tendência do recém elaborado Plano Urbanístico Básico de privilegiar o transporte individual. Como alguns previram, foi um caos na Cidade.

Ao lado disso, desenvolvia-se, muito ao gosto da indústria automobilística, o lema de que "os bondes atrapalhavam o trânsito”, apesar de que os técnicos mais sensatos asseguravam que "o trânsito é que atrapalhava os bondes”. E, em 1968, extinguiu-se o sistema de bondes que, no período de maior eficácia, possuiu 700 km de linhas, por onde se transportaram 380 milhões de passageiros anualmente.

À mesma época, criou-se a Companhia do Metropolitano, com a expectativa de implantar 100 km de linha em 20 anos (dados da Prefeitura Municipal em 1956). Em 1975 foi inaugurada a primeira linha e, passados 44 anos, estão em funcionamento 70 km.

Paralelamente o Estado procurou recuperar as linhas de trens de subúrbio, reunindo aquelas de gestão estadual com as federais, criando a CPTM, com 280 km de linhas, das quais 160 operando dentro da Capital.

Apesar de todo esse esforço em favor do transporte de massa, os dados referentes à última pesquisa de origem e destino (2007) mostraram que, enquanto em 1947 a rede de bondes proporcionou uma mobilidade de 0,58 viagens por habitante/dia, em 2007 a mobilidade propiciada pelos sistemas sobre trilhos (CPTM + METRÔ) não foi além de 0,22.

Defendendo a necessidade de verdadeira mobilização da sociedade em favor dos investimentos em transporte público, calculamos, em 1998, que as perdas sociais devidas à insuficiência do transporte público e ao congestionamento da Cidade eram da ordem de 22 bilhões de reais por ano. Hoje já se estima que tais prejuízos estejam na casa dos 50 bilhões de reais.

Em 1976 a Prefeitura de São Paulo e o Governo Federal elaboraram o Plano SISTRAN, destinado à definição e implantação de um sistema de transportes de média capacidade, composto de 280 km de linhas de tróleibus, com 1.580 veículos inicialmente. Foi iniciado na gestão Setubal e abandonado pouco tempo depois.

Entre 1996 e 1998, voltando ao conceito do transporte de média capacidade, a Prefeitura idealizou uma rede de transportes sobre pneus (VLP), com cerca de 150 km de extensão, em vias segregadas, operada por veículos elétricos. Um precursor do hoje chamado BRT, o VLP teve 12 km implantados sob o nome de Expresso Tiradentes, logo descontinuado, embora seja atualmente a rede de transportes de melhor avaliação pelos usuários.

Esta é a sombria história dos transportes públicos de São Paulo, que tem como conseqüência o insuportável congestionamento da cidade, com todas as conseqüências, que vão da poluição atmosférica aos atropelamentos e das gigantescas perdas de tempo às da produtividade, gerando perdas de 50 bilhões de reais por ano.

Como explicar todo esse descaminho?

O que se está fazendo hoje? O que falta fazer?

Questões críticas do transporte urbano

Escrevi acima sobre ‘Como o Sistema Público Perdeu a Batalha do Transporte’, mostrando os descaminhos do transporte urbano desde 1925 até hoje. Por que 1925? Foi nessa época que proliferaram os ônibus na Capital, competindo de forma anárquica com o sistema de bondes. Daí em diante, ônibus e, logo após, os automóveis exerceram uma ação destruidora contra a necessária organização dos transportes, com o beneplácito da população que, movida pela promessa do conforto automobilístico, deixou-se levar pelo lobby das indústrias de veículos e de combustíveis. A reivindicação principal dos cidadãos foi, desde então, mais avenidas, viadutos, pontes e tuneis.

Mas esse não foi um erro de visão apenas dos brasileiros. O documentário "Taken for a ride – GNT Especial” mostrou claramente como nos EUA, a General Motors financiou e pressionou em favor da extinção dos bondes e dos trólebus nas principais cidades. (veja ao lado)

Em fins de 1982, com a vitória de Franco Montoro para governador do Estado e conseqüente responsabilidade pela Prefeitura de São Paulo, houve várias reuniões no Instituto de Engenharia, em busca de propostas para solução dos vários problemas do Estado e de sua Capital. Dentre eles, os do transportes e do trânsito.

Lembro-me da posição pragmática de um competente consultor, ao afirmar: "o automóvel veio para ficar”; como também recordo a reação de nós outros. Mas o que ele afirmava não era a manifestação de um desejo ou de uma proposta, mas sim a constatação de um fato aparentemente irreversível, para o qual a cidade até procurou se preparar, ao criar a CET – Companhia de Engenharia de Tráfego, com uma visão eminentemente voltada para o alívio do trânsito, em vez de criar, como vários de nós sugerimos à época, uma Companhia de Engenharia de Transportes (ou Engenharia de Transportes e Trânsito). Traçou-se ali o rumo das ações municipais, priorizando o trânsito e não os transportes.

Hoje a cidade debate-se com os problemas do congestionamento urbano que custam à sociedade, segundo alguns técnicos, algo como 50 bilhões de reais por ano. Aí está uma primeira questão a ser enfrentada: o reconhecimento do elevadíssimo ônus pago pela sociedade pelos seus erros nesse campo, incluindo aí os custos dos acidentes, da poluição e, sobretudo, da perda de produtividade de todos os que se submetem às agruras do transporte e do trânsito. São recursos de espantosa dimensão, semelhantes ao próprio orçamento da Cidade, jogados fora, onerando a vida dos munícipes e desviados da boa aplicação na área dos transportes, sempre carente de recursos. É a hora de abandonar as equações custo/benefício tradicionais e adotar o cálculo das externalidades negativas que o sistema encobre. É a hora de reconhecer que o sistema metroviário, para uma receita anual de R$ 1.820 milhões e uma despesa correspondente de R$ 1.694 milhões (excluídos custos de capital), ostenta um beneficio social de R$ 6.440 milhões, o mesmo ocorrendo com a CPTM.

A segunda questão é reconhecer que a Região Metropolitana tem um transporte de alta capacidade (metrô e trens) e uma profusão de ônibus e automóveis, caracterizando um sistema de baixa capacidade. Falta o "sub-sistema de média capacidade”, de que tratava a lei municipal 12.328 de 24/04/1997, revogada em 12/12/2001. A cidade tentou, em 1977 (Plano SISTRAN) e em 1997 (Fura Fila), seguir por esse caminho, mas viu o seu pretendido sistema de corredores de tróleibus dar lugar a algumas vias expressas, com forte congestionamento de ônibus nos horários de pico, devido à inexistência de requisitos fundamentais, hoje perseguidos pelos chamados BRT’s – Bus Rapid Transit em todo mundo.

Se o Município e a RMSP se conscientizarem acerca dessas questões, poderão, em conjunto, alcançar a curto prazo a tão sonhada preferência pelos transportes públicos.

Adriano Murgel Branco - ex-Secretário dos Transportes e da Habitação do Estado de São Paulo, eleito Engenheiro do Ano de 2008, Membro da Academia Nacional de Engenharia.