"A verdadeira dificuldade
não está em aceitar ideias novas,
mas em escapar das antigas”
(Keynes)
"O
planejamento de longo prazo
não trata de decisões futuras,
mas do futuro das decisões do presente"
[Peter
Drucker]
"O segredo do sucesso não é prever o
futuro.
É prover, no presente, certas condições
para prosperar no futuro
que não pode ser previsto”
(Michel Hammer)
"Visão sem
ação, é só um sonho.
Ação sem visão é uma forma de passar o tempo.
Visão com ação pode mudar o mundo."
[Joel Barker]
"Nós somos o que fazemos
para deixar de ser o que somos”
(Eduardo Galeano)
Sucateamento!
Abandono! São expressões frequentes no sincopado noticiário ferroviário
brasileiro. E há razões para tanto:
Muitos
dos trechos ferroviários implantados desde o império foram abandonados e, até,
erradicados. Como consequência, a malha ferroviária brasileira, que chegou a
ter mais de 35.000 km operacionais, no final dos anos 40, está hoje reduzida a
pouco mais de 27.000 km, dos quais apenas 1/3 é considerada produtiva (extensão
similar à existente no final do Século XIX). E, bem assim, essencialmente para
carga, pois o transporte ferroviário de passageiros de longa distância está
atualmente limitado a pequenos nichos residuais.
Quando
criada, em 1957, a RFFSA consolidou 18 empresas ferroviárias (outras 5
incorporadas posteriormente). A malha paulista, mais tarde consolidada sob a
FEPASA (1971), chegou a ter 18 ferrovias. Atualmente o sistema ferroviário
brasileiro é administrado por meia dúzia de empresas.
Mas
isso é, apenas, parte da história:
Entre
o pós-II Guerra Mundial e o fim do período militar (1950-80), enquanto esse
encolhimento ia se efetivando (”desmonte”,
para uns; "reestruturação”, para
outros), o Brasil anabolizou a Estrada de Ferro Vitória-Minas (EFVM), como
parte dos projetos de Tubarão/Praia Mole da Vale (ES); implantou a Ferrovia de
Carajás (EFC), parte do projeto Ponta da Madeira/Itaqui (MA); e iniciou a
implantação da Ferrovia Norte-Sul (mais um trecho inaugurado em MAI/2014, e recentemente operacionalizado). Só a EFVM e EFC, operadas pela Vale,
que podem ser consideradas de uma 2º geração ferroviária, são responsáveis,
hoje, por mais de 2/3 da movimentação total brasileira (315 bilhões de TKU, em 2015).
Também,
nesse período, foram implantadas as primeiras linhas metroviárias para o
transporte de passageiros em São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Belo
Horizonte e Recife; sistemas que foram/vem sendo expandidos, ainda que de forma
inconstante, até os dias atuais.
A
década de 1990 foi caracterizada pela desestatização: Em 1992 a RFFSA foi
incluída no PND; processo efetivado entre 1996/98 (envolvendo
também a FEPASA paulista, recém incorporada à RFFSA), do qual resultaram 6
malhas/concessões, por um período de 30 anos. E, de forma indireta, como parte
da desestatização da Vale (6/MAI/97), também a EFVM e EFC o foram.
Desde
então, entre 1997-2014, segundo o último balanço da ANTF, enquanto o índice de acidentes caiu
84,7% e a idade média da frota à metade (de mais de 40 para cerca de 22 anos), a
movimentação cresceu aceleradamente, lembrando as "taxas chinesas” (83,2% em TU), e a produção robustos 124,1% (em TKU
– média de 4,9% a.a); o dobro do crescimento do PIB no período: 58,9%. A se
destacar o segmento de contêineres, que cresceu 114 vezes (média de 32,2% a.a)!
Esse
desempenho resultou de investimentos de R$ 48,6 bilhões (média de R$ 2,86
bilhões/ano) em projetos articulados de recuperação e expansão acessória da
infraestrutura, de renovação e ampliação da frota de material rodante, de
implantação de novos sistemas de sinalização e controle, de instalações e
equipamentos para desenvolvimento da intermodalidade, e de novos padrões
gerenciais.
Além
dos investimentos feitos, as concessionárias pagaram ao governo federal R$ 7,8
bilhões a título de concessões e arrendamentos, e R$ 21,3 bilhões em tributos
(cerca de R$ 29 bilhões no total).
Em
síntese, como na conhecida fábula hindu (os cegos e o elefante - 01, 02, 03, 04), ao se revisitar o passado, há fatos
e argumentos, tanto para os que vêm o sucateamento, o abandono, o declínio da
ferrovia no Brasil (01, 02), como para aqueles que vêm sua
reestruturação, seu renascimento.
Cenários futuros:
Aliás,
também quando se olha para o futuro, há fatos e argumentos tanto luminosos como
turvos:
Em
termos de planos anunciados o cenário é estimulante: O PNLT (02) propugna aumento expressivo do modo
ferroviário na matriz de transportes; a alcançar cerca de 1/3 em 2025 (que o
guindaria a um "empate técnico” com o
rodoviário – que decresceria até então). O PIL-1, anunciado em 15/AGO/2012, previa
investimentos de R$ 91 bilhões (R$ 56 bilhões nos 5 primeiros anos), em 11.661
km, para "dobrar a extensão da malha
ferroviária atualmente em uso + ferrovias de alta capacidade e sem
interferência com centros urbanos, com velocidade de projeto de 80 km/h +
interoperabilidade de toda a rede ferroviária nacional”. Em 09/JUN/2015,
mesmo com a execução do PIL-1 aquém do previsto, foi anunciado o PIL-2 (02); definindo as 5 prioridades para "novas ferrovias e novos investimentos em
concessões existentes, totalizando R$ 86,4 bilhões de investimentos projetados”.
Há
ainda projetos estaduais em gestação; como a FEPASA (paraense); e alguns deles procurando
trilhar o caminhos da bola da vez, as "short lines"; justamente partindo de trechos/ramais
desativados na 2º metade do século passado; como o "Trem Pé Vermelho”, no Paraná.
O
que turva esperanças é que cronogramas são sucessivamente protelados e
redefinidos; enquanto a execução
orçamentária, particularmente das intervenções
públicas, ostentam índices pouco
animadores. Com resultado, obras são afetadas pelo "efeito io-io”, como é o caso da duplicação da EFC (01; 02; 03). Também re-projetos, re-autorizações
e re-licenciamentos não são raros; aditivos tornam-se necessários (mesmo não
envolvendo eventuais práticas de corrupção!), etc. etc. E, lógico, tudo isso
afeta a confiança de potenciais investidores; justamente nesse momento onde a
participação privada é tão necessária; tão acalentada.
Assim,
ao se olhar o futuro, talvez a metáfora mais própria seja, agora, a da esfinge egípcia: "Decifra-me ou te devoro!”.
Nesse
sentido, desnecessário gastar-se tempo, calorias, adrenalina ou dinheiro para
se decantar as virtudes da ferrovia: Virtudes logísticas e ambientais (no seu
sentido mais amplo). A não ser para se massagear egos, justificar viagens e
despesas, garantir a "mímica do dever
cumprido”, explicar-se para superiores, bases ou associados... Ou seja; "ficar bem na fita”!
Se
efetivamente queremos tirar ideias da cabeça ou projetos do papel, transformar
"intenção em gesto”, mudar a
realidade, é preciso um trabalho, sistemático, de identificar os gargalos, estabelecer
formas de superá-los, planejar e, principalmente, executar o
planejado!
Esse
cardápio, certamente, será amplo. Incluirá ingredientes no identificar oportunidades,
no esquadrinhar o mercado, no conceber (01, 02, 03), no planejar (01, 02), no projetar, no negociar com os diversos atores envolvidos ("stakeholders”), no autorizar, no
licenciar (01, 02), no modelar (01, 02), no licitar, no estruturar/financiar,
no implantar, no operar,
no comercializar, no regular...: Taí! Esse rol pode até vir a se constituir em
um embrião de índice preliminar para tal trabalho sistemático!
Ainda
como sugestão; como subsídio: Por que não compor-se uma matriz, tendo como um
dos eixos esse rol de aspectos e, no outro, projetos ferroviários,
concretos/reais, que caminham soluçando e/ou constam apenas de relatórios, sites ou powerpoints?
Haverá
alguns aspectos específicos; é de se esperar. Mas muito possivelmente nos
surpreenderemos com os pontos (gargalos; dificuldades) em comum... que bem
poderiam nortear um plano de ação para o efetivo enfrentamento dos problemas.
Importante ter-se em mente:
Mas
nesse desiderato, há algumas impedâncias que seria bom fossem removidas para
viabilizar melhores resultados no desenvolvimento ferroviário. Elas são, majoritariamente,
do plano analítico, conceitual e de abordagem:
1)
O único modo de transporte praticamente autossuficiente é o rodoviário. Todos
os demais dependem de, pelo menos, um outro; na maioria das vezes, do próprio
transporte rodoviário. Em tais condições, planejamento e gerenciamento integrado dos diversos modos de transporte tornam-se imprescindíveis... mas esse não é o nosso forte! Históricas debilidades
em uma e outra área talvez expliquem melhor as dificuldades para o
desenvolvimento da ferrovia, cabotagem e hidrovia que o bordão explicativo de
uma "opção rodoviarista” que teria
sido adotada em meados do Século XX; como resultado de um forte lobby da indústria automobilística (que até
pode ter atuado!).
2)
Cuidado com os bordões: O transporte ferroviário tem custos (preço é outra
coisa!) menores... mas nem sempre! Ferrovias ociosas podem ter custos elevadíssimos
que, se não refletidos nos preços, podem produzir grandes prejuízos. Em 1956,
p.ex., os déficits agregados das ferrovias brasileiras representavam 14% da
receita tributária da União! Esse foi um dos principais fatores que levaram à
criação da RFFSA no ano seguinte, com o objetivo de "padronizar procedimentos, modernizar a operação, reduzir a despesa e
aumentar a produção”.
3)
Infraestrutura é caracterizada por projetos que, em geral, exigem investimentos
pesados, parcela importante desses de "sunk-costs” ("custos irrecuperáveis”), longo tempo de maturação e de
carência (até que a primeira operação/faturamento ocorra). No caso de ferrovias
esse perfil tende a ser potencializado, principalmente em se tratando de
projetos "green-field” (os "brown-field” menos!), como os que estão sendo
pensados para a chamada "Saída Norte”. Dito de outra forma; elas exigem
altas somas de capital prévio, têm "barreira
à saída” relevante, e altos custos fixos. E, evidentemente, não "aguentam” inclusão ilimitada de
compensações, como imaginam muitas comunidades e administrações lindeiras.
4)
Disso decorre que dificilmente haverá soluções no atacado. No mínimo será
preciso segmentar-se o universo em: i) Empreendimentos "brown-field” X "green-field”;
ii) Carga X passageiros (urbano/metropolitano); iii) Especificamente na carga,
linhas/sistemas ofertando serviços ao mercado X as integrantes de uma cadeia
logística (por sua vez integrante de uma cadeia produtiva); casos de sucesso no
Brasil... e bons contraexemplos ao tal bordão da "opção rodoviarista”!
5) Além disso, pouco poderá a experiência
passada acrescentar, visto que os cenários são/serão muito distintos. Portanto,
o futuro não é mera projeção ou prolongamento do passado: Os empreendedores
ferroviários do Império e, mesmo, da República Velha, quase que como um
alfaiate que se debruça sobre a peça de tecido, podiam definir seus projetos
com enorme grau de liberdade. Suas outorgas tinham apenas alguns condicionantes,
a ocupação do território era rarefeita, matas virgens cobriam a maior parte dos
futuros traçados, as terras eram baratas (muitas vezes gratuitas!). Ou seja,
realidade bem distinta i) do quadro institucional nesse início de Século XXI
(licitações para outorgas, agências reguladoras e ambientais, tribunais de
contas, ministério público, movimentos sociais e imprensa ativos, etc), e ii) de
condicionantes (áreas urbanas, comunidades indígenas e quilombolas, etc) que
precisam ser levados em consideração nos planos/projetos; seja física e
operacionalmente, seja como potenciais objetos de mitigações/compensações.
6)
Decorre, também, que na conjuntura atual (inflação + câmbio + juros mais
elevados, fontes de financiamento mais escassas e incertezas
político-administrativas se avolumando) o "funding”
dos empreendimentos se torna mais complexo, os custos se elevam e a perspectiva
de rentabilidade, se não diminui, ao menos se torna mais imprevisível. Ou seja,
numa analogia olímpica, "o sarrafo subiu”!
7)
Sempre se soube (01, 02). A conjuntura atual só agrava o
quadro: i) Transporte público de passageiros é caro; se de qualidade, mais
ainda. ii) Tarifas, isoladamente, dificilmente cobrem custos totais do
transporte público; por vezes nem mesmo os custos operacionais. Por isso
precisam ser subsidiadas por tesouros, como é o caso de SP. Em muitas metrópoles
mundiais outros "beneficiários”
contribuem para cobrir os custos operacionais do transporte público e/ou para
desonerar o usuário (na linha do nosso "Vale-Transporte”);
iii) Investimentos infraestruturais,
mormente no caso metro-ferroviário, ou são feitos a fundo perdido, pelo poder
público, ou envolvem fontes exógenas; como decorrentes da exploração
imobiliária (Hong Kong talvez seja o exemplo mais mencionado atualmente. No
Brasil, se hoje isso é incipiente, sua formal possibilidade já foi um dos
grandes estímulos ao capital privado: Decreto-Lei nº
641, de 26/JUL/1852!).
8)
Concessões e PPPs (ou as imprecisas e/ou amorfas "parcerias”) são instrumentos importantes para viabilização de
projetos ferroviários. Mas, para que se possa contar efetivamente com a
participação do setor privado, é preciso ter-se em mente (e leva-lo em conta,
efetivamente) que empréstimos são para ser pagos (ainda mais no pós-Lavajato!)
e empresários visam (legitimamente) lucro.
9)
Ah! "Vontade política”, se existe, não é algo gravado no DNA
dos governantes: Ela precisa ser construída. E isso requer "engenho e arte” na conjugação de
fundamentos, propostas, argumentos e mobilização.
Que a determinação de Mauá e de tantos outros empreendedores que nos legaram o parque ferroviário que hoje temos; e os ensinamentos de Keynes, Peter Drucker, Michel Hammer, Joel Barker, Eduardo Galeano… nos inspirem e estimulem!
Frederico Bussinger, ex-secretário de Transportes de São Paulo; ex-presidente da CPTM e SPTRANS; e ex-diretor do Metrô/SP