Multa ao pedestre: a punição antes de regras claras

29/10/2017 00:00 - Luiz Carlos Mantovani Néspoli (Branco)

É possível que a atual medida do Conselho Nacional de Trânsito de regulamentar a aplicação de multa a pedestre tenha em sua origem a intenção de reduzir atropelamentos, que são de fato os maiores produtores de mortes e sequelas no trânsito. Só em São Paulo, a morte de pedestre representa quase metade de tudo. 

Mas, ao publicar tal resolução, cujo ineditismo no Brasil repercutiu em toda a mídia, lamentavelmente, o CONTRAN contribuiu negativamente ao debate, dando margem a interpretações inadequadas do verdadeiro problema ao deslocar o pedestre da posição real de vítima para a de culpado. Antes de ser vítima do acidente de trânsito, o pedestre é vítima das condições físicas e ambientais a que está sujeito nas ruas das cidades. 

É este ambiente hostil e confuso que leva o pedestre fazer o que faz, constrangido diariamente pelos veículos e, a partir de agora, se a resolução persistir, também pela fiscalização.

Sempre que exigirmos respeito a normas e regras de conduta, é indispensável que elas sejam claras e, mais do que isso, que possam ser praticadas. Não é o que se observa no caminhar a pé nas cidades. Do ponto de vista da regra de trânsito, por exemplo, o pedestre não deve andar na pista de rolamento, esta destinada aos veículos. No entanto, como é possível exigir de uma pessoa com deficiência, ou a uma mãe com um carrinho de bebê, descer (ou subir) uma rua íngreme utilizando a calçada repleta de degraus se, ao contrário, o asfalto é frequentemente mais regular e uniforme? Como exigir (ou educar) um pedestre a utilizar uma faixa de travessia se ela não existe?

O fato mais comum que se observa nas cidades brasileiras é um ambiente viário urbano sem um padrão ou pelo menos alguns padrões bem definidos para o pedestre. As calçadas, quando existem, nem sempre têm a largura desejável, são mal conservadas, apresentam obstáculos e degraus e pisos variados. Os cruzamentos são muito confusos, ora com semáforos, ora sem, ora com focos para pedestre, ora sem, ora com botoeiras, ora sem. Quando há semáforos, não é totalmente compreensível porque a divisão dos tempos é tão desfavorável ao pedestre. É ocioso enumerar toda a diversidade de situações sem regras claras a que o pedestre está sujeito, o que o leva a ter que tomar decisões desprotegido e com base apenas em sua própria avaliação de risco.

Para se ensinar e educar é necessário que o sujeito da aprendizagem tenha conhecimento da regra do jogo, e assim constituir um conjunto de saberes e habilidades de modo a aplica-los em sua vida cotidiana com autonomia. Ao instituir a punição, sem que exista nas cidades um ambiente urbano que seja facilmente compreendido e aceito pelo pedestre e no qual ele saiba como se comportar, é introduzir mais confusão ainda na vida dos cidadãos. A partir desta regulamentação do CONTRAN, afinal, como o pedestre deve proceder nas condições físicas atuais que as cidades oferecem para caminhar sem estar sujeito a uma punição?

Antes de agir punitivamente, é necessário que se construa espaços mais intuitivos, seguros e confortáveis para o pedestre. E o primeiro passo é a administração pública dedicar-se a esse modo de transporte com a mesma intensidade que se dedica ao tráfego de veículos. Assim como há redes viárias para automóveis (ruas) e redes de transporte público (linhas e itinerários), é necessário que se discuta o conceito de “rede” para o caminhar a pé. É necessário que a caminhada se dê em ambientes uniformes, contínuos e aprazíveis, constituídos por calçadas adequadas, travessias de rua sinalizadas e seguras, tempos equilibrados de semáforos, iluminação que dê segurança ao caminhar e passagens, dentre outros elementos constitutivos.

Se o intuito da resolução do CONTRAN foi o de reduzir atropelamentos, a medida, além de propiciar ao motorista uma narrativa para os seus comportamentos inadequados, está longe de alcançar tal objetivo sem que antes se dê o tratamento adequado ao andar a pé nas cidades brasileiras e sem que antes se coloque em prática alguns dos princípios trazidos pela Lei de Mobilidade Urbana, como o da equidade no uso do espaço viário público e a prioridade aos pedestres. Medidas que tornem os espaços físicos mais adequados, aliados a políticas de redução de limites de velocidade em vias urbanas e a criação de Zonas 40 e Zonas 30, são as que de fato poderão surtir os efeitos desejáveis. Com ambientes mais organizados e as ruas menos hostis será muito mais fácil comunicar regras e obrigações e, com isso, estabelecer campanhas educativas aderentes à realidade, de resto mais eficazes do que o constrangimento legal pretendido.

 (*) Luiz Carlos Mantovani Néspoli - Superintendente da ANTP