Está claro que os R$ 0,20 foram só a gota d’água e/ou a
ponta do iceberg ... como passou a ser bordão das primeiras análises, após a
surpresa inicial com as pulverizadas e massivas manifestações dos últimos dias.
É também evidente que só pela política (a velha e boa
política... à qual já estávamos meio desacostumados!) será possível construir
soluções de compromisso para o multifacetado quadro que os "gritos das ruas”
trouxeram à tona... o que não significa que elas não devam se assentar sobre
fundamentos objetivos, técnicos, se se quer que elas sejam consequentes e
sustentáveis também no médio e longo prazo. Inclusive para que possam emergir e
ser arroladas novas hipóteses/alternativas de solução, não vislumbradas
inicialmente, a olho nu: isso sabem os governantes!
Os pleitos iniciais começam a ser atendidos. Inúmeras
cidades já anunciaram a redução de suas tarifas em função de algumas
desonerações tributárias. No início da noite de ontem, São Paulo e Rio,
principais centros das manifestações, se incluíram nesse rol - indo além
daquilo que previamente anunciaram como resultado daquelas desonerações. Os
primeiros anúncios não deixaram claro mas, para tanto, muito provavelmente tais
decisões passaram a contar com algum mecanismo adicional para financiamento do
setor. O tema é complexo e merece algum detalhamento.
Nas milhares de cidades e regiões metropolitanas brasileiras
há casos de tarifas quilométricas, zonais e únicas (por linha/trecho ou por
tempo). Sistemas de arrecadação tarifaria privada (como numa típica e clássica
concessão) e outros públicos. Algumas em que os poderes públicos aportam algum
tipo de subsídios e outras não (fiel ao primado do "por-conta-e-risco” das
concessões). Algumas com algum tipo de "câmara de compensação” (entre linhas
e/ou áreas) e outras não. Algumas com sistemas de bilhetagem por papel, outros
magnéticos, outros com "cartões inteligentes” (que possibilitaram integrações
sem a necessidade, obrigatória, da existência de terminais físicos). Ou seja,
múltiplas combinações são possíveis.
Quando a tarifa é definida por linha/trecho, a arrecadação é
privada e inexiste subsídio (o que acontece na maioria – quantitativa - das
cidades), independentemente do tipo de bilhetagem, as tarifas são definidas por
planilhas derivadas das tradicionais introduzidas pelo GEIPOT (1, 2, 3).
São Paulo, o berço dos recentes movimentos, tem tarifa
temporal, sistema de arrecadação pública, subsídios (pesados!), uma "câmara de
compensação” implícita (a denominada "conta sistema”), "cartões inteligentes”
(meio material/contratual do "bilhete único” - desde 2004) e alguns valores
tarifários diferenciados (com desconto). Esse sistema, para aumentar a
complexidade, abrange ônibus, metrô e trens metropolitanos (desde 2006). Daí
porque muitas análises da "evolução tarifárias” (1, 2) induzem a erros, pois comparam "produtos” diferentes: Antes de
2004, valor de tarifa "por trecho”; atualmente até 4 viagens, dentro de 3 horas
(incluindo metrô e trem)!
A melhor forma de expressar a "conta sistema”, é uma caixas
d’água. Esta tem entradas (receitas tarifárias + receitas extra-tarifárias +
compensações) e saídas (remunerações de concessionários + remunerações de
permissionários + despesas de operações de terminais + de comercialização de
bilhetes + de fiscalização).
A diferença entre entradas e saídas, normalmente
deficitária, requer subsídios (bilionários!). E, estes, certamente,
transparência (uma das mensagens subliminares das ruas) e novas fontes de
financiamento (sendo a CIDE, aparentemente, a mais à mão).
Em SP, berço dos recentes movimentos, o reajuste de R$ 0,20
foi revogado. Em valores e percentuais diversos, também em dezenas de outras
cidades. Mas o transporte público, "direito do cidadão; dever do estado” (*),
segue na pauta das manifestações e torna-se prioridade da pauta estratégica do
GF, de Governadores e Prefeitos. Uma primeira reunião está agendada para esta
segunda (24) à tarde e, certamente, transparência e formas de subsídio deverão
estar na mesa nessa rodada inicial - seguidas de gestão e novos empreendimentos.
A expectativa e a torcida são grandes! Felizmente, como
contribuições, ao contrário do que cantava Taiguara (2) ("Nós estamos
inventando a vida /
Como se antes nada existisse…”), há
enormes acervos de estudos, discussões, propostas e experiências sobre o tema,
produzidos nas últimas décadas: Estão em diversos núcleos pelo País afora, o
principal deles na Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP): por que
não convidá-la à mesa das negociações, ao menos como assessora técnica?
"Caixa Preta”:
Diversos instrumentos com o tempo foram sendo desenvolvidos para dar maior
transparência aos dados e aos critérios de cálculo – ao menos para técnicos,
parlamentares, órgãos de controle e formadores de opinião:
1) Inicialmente o GEIPOT(1, 2,3)
concebeu suas planilhas, largamente difundidas e usadas em quase todos os
municípios brasileiros.
2) Transporte urbano é tratado pela Lei
Orgânica do Município de SP – LOM nos art. 172ss. O art. 178, § único
determina que o Prefeito encaminhe à Câmara, com 5 dias de antecedência, "as
planilhas e outros elementos que lhe servirão de base, divulgando amplamente
para a população os critérios observados”. Na maioria dos municípios há
determinações congêneres; incluindo audiências públicas em diversos casos.
Basta, portanto, que vereadores, entidades da sociedade, imprensa... o exijam
(no padrão de qualidade necessário!), o analisem e ajam!
3) A proposta de reajuste para os R$ 3,20 (Dec.
nº 53.935 – de 25/mai/2013), como nos reajustes anteriores, foi
tempestivamente encaminhada pelo prefeito Haddad em 22/MAI/2013; acompanhada de
dezenas de detalhadas planilhas.
4) O Dec.
nº 47.139, de 27/mar/2006, criou a "Comissão de Acompanhamento da Conta
Sistema", instrumento econômico-financeiro central do sistema
paulistano. Tal comissão estabeleceu dinâmica de reuniões mensais para análise
detalhada do desempenho do mês anterior: Basta garantir seu funcionamento; se
necessário, reformulando sua composição.
Subsídio: A
dimensão do subsídio depende, obviamente, de um lado, dos custos do sistema; de
outro das suas receitas.
Custos: Dependem
da produtividade/eficiência do sistema e, esta, de diversos fatores, objeto das
planilhas. Mas um se destaca: A velocidade média de circulação que vem sendo
reduzida – muito em função do aumento exponencial das frotas urbanas;
impulsionado, no passado recente, pelos incentivos à aquisição carros novos. A
reversão do quadro, para resultar na redução das despesas de custeio, demandam
pesados investimentos, tanto na infraestrutura como em sistemas, RH e gestão.
Investimentos: Ao
contrário do que pode parecer à primeira vista, o principal entrave para um
maior fluxo de investimentos não tem sido a falta de recursos... mas a baixa
taxa de execução do orçamentariamente dotado: Superar 50% tem sido exceção –
como o foi caso do "Expresso
Tiradentes” (2,3,4).
Às vezes sequer se ultrapassa 1/3!
1) Razões há várias... mas uma é kafkiana: As dificuldades
para se fazer projetos, e licenciá-los, sem que haja dotação para o
empreendimento; o que gera um círculo vicioso: Quando a dotação chega a ser
prevista, não há tem hábil para se fazer o projeto, licenciá-lo e executá-lo
no(s) exercício(s). Ou o que é pior: Faz-se projetos "de-qualquer-jeito” (maus
projetos!) "só-para-se-gastar-o-dinheiro”! Esse círculo precisa ser rompido! Necessário haver (alguns)
"projetos-de-prateleira”.
2) As carências no setor demandam tanto o aumento da taxa de
execução como do montante dotado. Se os não-reajustes (ou reduções!) tiverem
que ser efetivamente financiadas com recursos transferidos de investimentos, a
situação tendo a se agravar. Urge, portanto, prover-se novas fontes de
financiamento para o setor.
Fontes de
financiamento
1) Nos municípios nos quais inexiste subsídio, as
"gratuidades” são rateadas pelos demais usuários: O pai paga mais para o filho,
estudante, pagar 50%. O filho paga mais para o pai, idoso, não pagar nada. Etc.
Etc. Nesses casos, a provisão de fontes externas para arcar com as gratuidades
pode ser importante instrumento da "modicidade tarifaria” (art. 6º da "Lei de
Concessões”).
2) Tanto para esses como para os municípios que subsidiam
parte dos custos (como SP), o instrumento mais à mão é a CIDE(proposta que foi levada pelos Prefeitos à Presidência da República).
3) A CIDE foi criada pela Lei nº 10.336/2001: uma contribuição "incidente sobre a importação e a comercialização de petróleo e seus derivados, gás natural e seus derivados, e álcool etílico combustível…” cujo produto da arrecadação seria destinada a "I - pagamento de subsídios a preços ou transporte de álcool combustível, de gás natural e seus derivados e de derivados de petróleo; II - financiamento de projetos ambientais relacionados com a indústria do petróleo e do gás; e III - financiamento de programas de infraestrutura de transportes”. Atenção: custeio de transporte público urbano não estava explicitamente incluído!
4) A Lei foi sendo alterada e re-regulamentada; em geral com
sucessivas reduções de alíquotas. Há um ano atrás elas foram zeradas,
de forma a compensar o reajuste dos preços de produção dos combustíveis. Só de
2008 até agora as estimativasé que deixaram de ser arrecadados R$ 22 bilhões com tais reduções (suficientes
para 17 anos de subsídios ao sistema paulistano; ou implantação de uma rede de
metrô maior que a atualmente existente em SP!).
5) Tem sido cogitada a criação de uma "CIDE-Municipal”. Mas
talvez seja mais simples restabelecer-se as alíquotas (por Decreto) e, se
necessário, ampliar seu escopo (para incluir custeio dos transportes públicos)
– agora mais que legitimado!
6) A "Conta-Sistema”, em SP (e congêneres em diversos outros
municípios), mecanismo extremamente confiável, como "glicose-na-veia”, seria
instrumento pronto e fácil para operacionalização, imediata, de tais subsídios.
Dados há. Conhecimento e propostas também. Parodiando conhecida marca de produtos esportivos, "just-do-it”!
Frederico Bussingeré Engenheiro, Consultor Técnico e Ex-Secretário Municipal de Transportes
(*) "Transporte:
Direito do Cidadão” foi o título e era o mote das teses/propostas do "Grupo
Pirata” à coordenação da "Madre Teodora” (pg. 19) (endereço, em SP, onde se
reunia o núcleo de programa de Franco Montoro, candidato ao GESP em 1982). As
formulações do grupo, nucleado por integrantes do "Movimento dos Profissionais
por um Governo Democrático – MPGD” (criado no ano anterior no caudal da
re(?)-democratização), eram erigidas sobre a ideia (não clara e disseminada à
época!) de que o transporte público é imprescindível para que o cidadão urbano
possa, efetivamente, compartilhar e usufruir da infraestrutura, serviços
públicos, economia e cultura na/da "urbis” - motor do processo histórico de
urbanização. Daí ser um "serviço público essencial”; daí um direito!
Em seminário realizado na FUNDAP, fomos questionado pelo Ex-Parlamentar e Ex- Ministro Almino (político imprescindível em momentos como este!): "Se é direito do cidadão, há que ser dever do Estado”... o que levou o mote ser completado. Mais tarde, por PL do Ver. Walter Feldman, o mote passou a ser estampado nos ônibus paulistanos; e, na Constituinte, o setor da saúde foi mais bem sucedido que os "transporteiros”, cristalizando-o como conceito na CF/88 (art. 196).