Renovações das concessões ferroviárias: O ato administrativo e as oportunidades abertas

20/07/2018 07:30 - Frederico Bussinger


O final da fase de grupos alimentara nossas esperanças de chegar à final da Copa do Mundo. O processo eleitoral, em compasso de espera, se limitava a articulações de bastidores e a discussões programáticas preocupantemente superficiais. Entretanto, naquele 2/JUL/2018, uma decisão do Conselho do PPI deflagrou processo que pode ter trazido à baila e nos dado oportunidade de discutir questões estruturais da maior importância para o futuro do País. 

Não se trata da necessidade do País retomar investimentos para impulsionar um novo ciclo de desenvolvimento. Menos ainda de se remover gargalos logísticos para se aumentar a competitividade da produção brasileira; mormente do agronegócio. Tampouco de se buscar balancear a matriz de transportes, aumentando a participação da cabotagem, do transporte dutoviário, hidroviário e ferroviário. Tudo isso é óbvio: não precisam ser brandidos tais bordões, nem discutidos; apenas posto em prática!

As decisões do CPPI, e seus desdobramentos, todavia, trazem à baila oportunidade de se refletir e discutir: i) possibilidade e conveniência de vinculação de recursos (fiscais e parafiscais); ii) critérios para estabelecimento de valores para renovações antecipadas de concessões (não apenas ferroviárias), iii) sinergias e limites das relações público-privadas; iv) estratégia para priorização de investimentos, v) papel e metodologia de planejamento, e vi) funcionamento e limites do pacto federativo corrente; questões relevantes para muito além das renovações em tela. E, mesmo, para as concessões ferroviárias, infraestruturais e/ou de serviços públicos.

Em síntese: na sua 7ª reunião o CPPI aprovou o “Plano Nacional de LogísticaPNL”, qualificou 14 novos projetos e os incluiu na agenda decisória; em particular a FICO. Também, aplicou, pioneiramente, a possibilidade, introduzida pela Lei nº 13.448/2017, de utilização de contrapartidas à prorrogação de concessões em outros projetos: no caso da EFC/EFVM (Vale) para implantação dos 383 km da FICO (GO-MT); decisão saudada por lideranças do MT.

De imediato os governadores do ES e PA manifestaram-se (01, 02, 03) reivindicando que, ao contrário, os recursos oriundos das renovações antecipadas da EFVM e da EFC fossem destinados a projetos ferroviários em seus estados (ES; PA). De igual forma, e em alinhamento não habitual, parlamentares, lideranças políticas (01, 02) e entidades da sociedade civil (01, 02, 03) defenderam as mesmas teses.

Extraordinariamente, em resposta aos questionamentos, o CPPI reuniu-se 4 dias depois e aprovou a “qualificação no âmbito do Programa de Parcerias de Investimentos da Presidência da República - PPI: I - Projetos do Tramo Norte da Ferrovia EF-151 - Ferrovia Norte-Sul (entre Açailândia/MA e Barcarena/PA, no Porto de Vila do Conde), Estados de MA e PA; e II - Ferrovia EF-118, ES e RJ”.

Julgando a mera “qualificação” desses 2 projetos insuficiente, e ante a não explicitação de fontes de recursos para implementação deles como ocorrera com a FICO, os governadores reuniram-se em Vitória (10/JUL/2018) e encaminharam oficio ao Presidente Michel Temer que conclui por solicitar que “... suspenda os procedimentos instaurados pela Secretaria do PPI, com vistas à prorrogação antecipada das concessões das ferrovias EFVM e EFC, para iniciar diálogo entre os entes federados e a União de modo que os investimentos exigidos pela Lei nº 13.448/2017 sejam direcionados aos Estados que têm relação direta com as concessões”.

Essa iniciativa teve ampla repercussão na imprensa (01, 02, 03, 04; 05, 06, 07); com questionamentos, aprofundamentos e desdobramentos sobre: i) o valor a ser pago pelas renovações antecipadas; ii)  mudança de posicionamento da Vale, que antes teria decidido expandir a malha no ES; iii) possibilidade da Vale ter influído na decisão do Governo Federal, visando ampliar os benefícios da renovação antecipada das concessões (EFVM e EFC); iv) e, paralelamente, dificultar o estabelecimento de concorrentes/concorrência no mercado minerário, a par de ampliar sua influência no mercado do agronegócio. Mas, também, houve ácida crítica às iniciativas dos governadores e apoiamento aos encaminhamentos do PPI.

Em paralelo, a Comissão de Serviços de Infraestrutura do Senado aprovou requerimento para convocação de Audiência Pública sobre o tema; evento que deverá ocorrer a 7/AGO próximo.

Na sequência, o Governo do ES efetivou o que anunciara e arguiu judicialmente o processo e as decisões. E o Governo Federal, dando curso às suas respostas, anunciou a criação de um fundo para investimentos ferroviários.

A ver:

Vinculação de recursos:

A expansão da malha ferroviária, meritória, é quase uma unanimidade. O mesmo não ocorre com a vinculação de recursos oriundos das renovações antecipadas das concessões existentes.

Alguns, na linha do art. 167 da Constituição Federal, particularmente seus incisos IV, IX, X e seus parágrafos, ainda que não se trate de impostos (explicitado no texto constitucional), defendem que tais recursos devam ser aportados ao caixa único do Tesouro e, aí, alocados via discussão congressual e pelo OGU.

Outros, todavia, o defendem lembrando do modelo pré-CF/88; quando o setor de transporte viveu dias áureos, podendo contar com recursos regulares e vinculados.

Boa discussão!

Valor:

Do noticiário inicial entendeu-se que o valor devido pela Vale para renovar antecipadamente as concessões da EFVM e EFC era de R$ 4 bilhões; a serem aplicados na construção da FICO. Posteriormente foi esclarecido que esse valor referia-se, apenas, à EFVM: o referente à EFC “era negativo”; hipótese que já havia sido aventada por representante governamental em Audiência Pública realizada no Senado, a 21/MAR/2018.

Negativo? Ou seja, a União precisaria pagar à Vale para renovar, com ela, a concessão de uma ferrovia com capacidade de 230 Mt/ano pelos próximos 39 anos? É isso mesmo?

No caso da EFVM, o Governo do ES avalia que esse valor é, no mínimo, o triplo. Ou seja R$ 12 bilhões. No da EFC, entre técnicos afeitos a esses cálculos, ouve-se falar de valores entre R$ 7 a 17 bilhões... muito longe de ser negativo!

O certo é que esses cálculos, até hoje não conhecidos, precisam vir a público. Não apenas valores, mas a própria metodologia utilizada.

Vale lembrar que a renovação é uma previsão da Cláusula 3ª do Contrato de Concessão, firmado em 30/JUN/1997. E a renovação antecipada uma previsão da recente Lei nº 13.448/2017 em seus art. 4º, II; art. 5º, caput; e art. 6º a 11, em particular.

Mas, em ambos os casos, apenas uma possibilidade; não uma obrigação ou regra geral. E tal possibilidade precisará ser demonstrada, conforme dispõe, p.ex, o art. 8º, caput, da referida Lei: “Caberá ao órgão ou à entidade competente ... realizar estudo técnico prévio que fundamente a vantagem da prorrogação do contrato ... em relação à realização de nova licitação para o empreendimento”.

Relação público-privado:

Normalmente projetos ferroviários (os de infraestrutura, de uma forma geral) são apresentados/”vendidos” como importantes para viabilizar investimentos. E, com eles, gerar empregos, tributos, produção, etc. Certamente procede!

Mas, de igual forma, eles têm também significados empresariais; particularmente os casos de renovações antecipadas. Isso, todavia, é pouco comentado; raramente falado. Mas possível de ser medido: as empresas concessionárias de capital aberto, p.ex, têm “valor de empresa” conhecido. Compará-los, antes e depois da conquista de uma nova concessão, ou da assinatura de um aditivo de prorrogação pode dar a dimensão de um tal impacto: há alguns exemplos no passado recente.

No caso específico do decidido em relação à EFC + EFVM e FICO, um desses impactos é enunciado nos próprios documentos preparatórios da 7ª Reunião da CPPI: “A FICO proporcionará a ligação do estado do Mato Grosso, cujo agronegócio cresce a taxas expressivas, à Ferrovia Norte-Sul. Neste primeiro momento, ligará o município de Água Boa/MT a Campinorte/GO. A ligação com o Mato Grosso proporcionará um fluxo de grãos para a Ferrovia Norte-Sul, o que aumentará a atratividade desta ferrovia, que irá a leilão no segundo semestre de 2018”

Certamente a mera perspectiva da implantação da FICO, em estado latente há vários anos, tem potencial de aumentar a atratividade da FNS – o que certamente refletir-se-á no leilão.

Todavia, não é difícil perceber-se, ela tem impacto também sobre as operações da VLI (trecho imediatamente contíguo à FICO), da EFC (com alguma capacidade ociosa pós-duplicação) e, ainda que compartilhando com o Porto do Itaqui, do próprio complexo portuário da Vale na Ponta da Madeira – MA.

Como mera referência, utilizando-se o tarifário da ANTT, o transporte das 13 Mt/ano (previsão para 2025: cerca de 1/3 no Ano-1 de operação) pelos 720 km da FNS, operados pela VLI, render-lhe-iam uma receita tarifária de R$ 1,028 bilhão/ano, valor relevante em relação aos seus resultados de 2017. E, pelos 513 km da EFC, entre Açailândia e São Luis, R$ 647,14 milhões; anualmente.

Ou seja, a renovação antecipada da EFC, além dos inquestionáveis e imprescindíveis benefícios para o norte do Mato Grosso e para o País, também trariam benefícios, em termos empresariais, para a própria Vale (concessionária da renovação antecipada) e da VLI (da qual é maior acionista, individualmente: 37,6%).

Estratégia de investimentos:

Todos sabemos: uma ferrovia, além, ou até antes de ser uma infraestrutura/serviço de transporte, é um agente de desenvolvimento regional. De igual forma são também os portos, as hidrovias, as rodovias...

Daí porque uma decisão de alocação de recursos para implantação de uma ferrovia, relativizando a declaração do Secretário de Coordenação de projetos do PPI, após a recente reunião dos governadores do ES e PA (“A decisão é meio óbvia...”), é uma decisão com diversas implicações; e inúmeras dimensões.

Econômica e social, geopolítica, entre elas; razão pela qual há tantos interesses em jogo!

Diferentemente dos interesses empresariais (pouco comentados), a questão em relação aos interesses geopolíticos é outra: nem sempre os objetivos são claramente propalados. Nem sempre o discurso reflete a realidade.

De concreto, e no essencial, há dois tipos de argumentos, que poderiam ser assim sintetizados:

Compensatório: Baseia-se nos impactos negativos que qualquer projeto infraestrutural causa. E procura compensá-los com impactos positivos. Foi muito utilizado, p.ex, pelas cidades/estados que serviram/servem de base para a exploração de petróleo na Plataforma Continental brasileira. Talvez o exemplo mais eloquente seja Macaé-RJ. Foca mais no passado e no presente.

Transformador: Sua lógica segue aproximadamente a que gerou o “Fundo Soberano” do Kuwait no pós-II Guerra Mundial (30 outros posteriormente – o da Noruega o maior deles). Ou seja: o petróleo embaixo das areias do deserto ou do Mar do Norte era, apenas, uma riqueza potencial. Precisaria ser extraído para ter efetivamente valor. E, considerando ser ele finito e não-renovável, seria necessário ser “reciclado” em outros ativos para seguir gerando riquezas; materiais e/ou humanas: um “círculo virtuoso”! Essa lógica vale para outros minerais e, também, para outras produções impulsionadas pela infraestrutura implantada. Diferentemente do compensatório, foca no presente mas, principalmente, no futuro.

Muitas vezes os argumentos/fundamentos se sobrepõe. É o caso, p.ex, das defesas feitas pelos representantes do Pará e do Espírito Santos para reivindicar o redirecionamento dos recursos oriundos das renovações antecipadas das concessões da EFC e EFVM para projetos em seus estados.

No caso do Pará, além das compensações pelos impactos socioambientais em seu território, três principais argumentos são frequentemente utilizados por representantes do seu Gopverno: i) a carga da EFC é oriunda de mineração no subsolo paraense; ii) o Estado tem perdas decorrentes da “Lei Kandir” (estimadas em R$ 50 bilhões, desde a promulgação da Lei); iii) o Estado não foi beneficiário de investimentos feitos na FNS (estimados em R$ 15 bilhões), como Goiás, Tocantins e Maranhão.

Metodologia de planejamento:

Entre as decisões do CPPI, em sua 7º reunião, está o “Plano Nacional de LogísticaPNL”. Ele objetiva “... contribuir no esforço de alocação ótima dos recursos, uma vez que tem como principal objetivo identificar e propor, com base no diagnóstico de infraestrutura de transportes, soluções que propiciem condições capazes de incentivar a redução de custos, melhorar o nível de serviço para os usuários, buscar o equilíbrio da matriz de transportes, aumentar a eficiência dos modos utilizados para a movimentação das cargas e diminuir a emissão dos poluentes”.

Todos objetivos meritórios, evidentemente. Mas essencialmente focados no transporte; na logística. Bom que, tão logo foi aprovado pelo CPPI, a EPL anunciou o início de processo visando revisão do PNL.

A se avaliar se não seria uma boa oportunidade para eventualmente alargada sua abordagem; seu escopo. Ou seja; a par dos olhos voltados para os gargalos, os problemas já postos (passado e presente), incorporar a dimensão de desenvolvimento econômico, social e ambiental inerente a logística (futuro).

É o caso, p.ex, dos 16 sítios minerários do sul do Pará; parte de duas centenas recém inventariadas no Estado: só neles estima-se um potencial de 80 Mt/ano; produção que só seria efetivada com a existência de ferrovia acessível (algo que nem a FICO nem a FNS atenderiam).

Se o PNL incorporar tal visão prospectiva, muito provavelmente suas conclusões e prioridades poderão ser outras. E mais consentâneas com o desenvolvimento futuro que se busca/quer.

Pacto federativo:

As ferrovias cujas renovações antecipadas estão em discussão são concessões federais. Por conseguinte, os órgãos federais são as instâncias competentes para encaminhar o processo e tomar as pertinentes decisões. É curial!

Os eventuais recursos oriundos, quer sejam de re-licitações, quer sejam de renovações antecipadas, por conseguinte, são da União. Não se discute!

Mas no tocante à definição de projetos estruturantes, de priorização de investimentos, isso não é tão claro assim: é por isso que tanto o “sistema” como o “plano” são nacionais – e não federais!

Ou seja, União, Estados, Municípios e DF têm atribuições e responsabilidades, seja por sua elaboração, seja por sua implementação e gestão.

Além do mais, o processo de licenciamento ambiental, com gênese na Lei nº 6.938/81, implementado e desenvolvido a partir da 2ª metade da década de 90, estabelece (01, 02), como condição para expedição das licenças ambientais (LP, LI e LO), a manifestação, explícita, das 3 instâncias.

Ou seja, é a própria anatomia e fisiologia do pacto federativo que está em questão!

Em síntese; por vias indiretas e, certamente, não programadas, o CPPI, com as decisões de sua 7ª reunião, trouxe à baila uma pauta, sistematizada, da maior relevância para definição do futuro do setor ferroviário, e da própria infraestrutura brasileira: i) possibilidade e conveniência de vinculação de recursos (fiscais e parafiscais); ii) critérios para estabelecimento de valores para renovações antecipadas de concessões (não apenas ferroviárias), iii) sinergias e limites das relações público-privadas; iv) estratégia para priorização de investimentos, v) papel e metodologia de planejamento, e vi) funcionamento e limites do pacto federativo corrente; questões relevantes para muito além das renovações em tela e, mesmo, para as concessões ferroviárias, infraestruturais e/ou de serviços públicos.

Pauta para a(s) consulta(s) e audiência (s) pública(s) previstas para agosto próximo. Desejavelmente pauta, também, para o processo eleitoral deste 2018. Sem cabotinismo, para o bem do Brasil.

Frederico Bussinger é engenheiro e economista. Foi Secretário de Transportes de SP, Secretário Executivo do MT, Presidente da CPTM e CONFEA, Diretor do Metrô/SP e membro da Comissão Diretora do Programa Nacional de Desestatização.