As conquistas sociais de um determinado segmento da
sociedade remetem, à primeira vista, a uma questão de justiça. Esse principio é
reforçado pelo fato de que a maioria dessas conquistas são objeto de leis
aprovadas pelos eleitos como representantes do povo nas casas legislativas e
sancionadas pelos Governos respectivos.
Entretanto, as leis podem fazer justiça para alguns e ter
como conseqüência a injustiça para muitos. A concessão de gratuidades e
benefícios tarifários nos serviços de transportes público urbano se enquadra
bem nessa situação.
O Transporte Público urbano é um serviço essencial para a
vida nas cidades, pois tem a missão de garantir os deslocamentos das pessoas,
ou seja, o direito de ir e vir estabelecido pela Constituição Federal. Devido a
esta característica, esse serviço tem que ter um preço justo e acessível, pois
a maioria das pessoas que o utiliza são aquelas pertencentes às classes mais
carentes da sociedade.
Na atualidade, um emaranhado de leis, originadas nos três
níveis de governo, concedem inúmeras gratuidades e benefícios tarifários a
diversos segmentos sociais nos serviços de transportes públicos urbanos.
Inicia-se pela própria Constituição Federal que concede a gratuidade aos idosos
com mais de 65 anos, passando por leis federais que concedem benefícios aos
carteiros, oficiais de justiça e fiscais do trabalho. A partir dai leis
estaduais e municipais cuidam de estender os benefícios a um grande número de
classes sociais como estudantes, aposentados do serviço público, deficientes físicos,
policiais civis e militares, bombeiros, etc.
Não nos cabe discutir o direito de cada um desses segmentos
da sociedade de usufruir os benefícios alcançados: ao contrário, as gratuidades
do idoso, das pessoas com deficiência e a meia passagem dos estudantes são
justas e merecem o nosso apoio. A grande questão a ser colocada é: quem está
pagando e quem deve pagar esta conta?
O fato é que a imensa maioria das leis, sejam federais,
estaduais e municipais, que estabelecem as gratuidades e benefícios tarifários
no transporte público, não indicam a fonte de recursos para custear essas
concessões. Na falta de uma fonte externa de custeio, a conta acaba indo para o
preço da passagem e quem paga é o usuário que paga a tarifa integral e não goza
de nenhum benefício.
O entendimento dessa conta é simples: o valor da passagem do
transporte público urbano é o resultado do custo total do serviço dividido pelo
número de usuários pagantes.
Assim, quanto maior o número de passageiros beneficiados com
gratuidades ou descontos nas passagens, menor será o número de pagantes e,
consequentemente, maior vai ser o valor da tarifa.
Hoje em dia, as tarifas dos transportes urbanos, na média
nacional, estão oneradas em cerca de 19% para cobrir os custos das gratuidades
e abatimentos tarifários.
Em outras palavras, isto significa que se houvesse fonte de
custeio externa para cobertura desses custos, as tarifas atuais poderiam ser
reduzidas em 19%.
Na verdade, ao se conceder benefícios tarifários a
determinadas segmentos sociais, vivenciamos na prática atual uma grande
injustiça social, onde, em grande parte, pessoas menos favorecidas socialmente,
e que utilizam transporte público todos os dias, estão financiando uma política
pública de assistência social. É o caso, por exemplo, de trabalhadores
assalariados sem carteira assinada e, portanto, sem direito ao vale-transporte,
que pagam pela gratuidade concedida pelas políticas sociais do Governo.
A maioria desses benefícios tarifários é concedida por leis
votadas nas casas legislativas dos três níveis de governo pelos representantes
da sociedade e sancionada pelos Governos respectivos. Dessa forma, fica claro
que a decisão de conceder cada benefício expressa um desejo de toda a
sociedade, a qual deve então arcar com os custos advindos dessas concessões.
Portanto, promover a justiça social é custear as gratuidades e descontos
tarifários no transporte público urbano através dos orçamentos públicos que
reúnem as contribuições de toda a sociedade, inclusive dos usuários nessa condição
de cidadã e não de passageiro.
No caso específico da gratuidade dos idosos, a Constituição
Federal é muito clara ao estabelecer no Artigo 230 que a família, "a sociedade”
e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas. Além disso, o Artigo 195 estabelece
que a seguridade social, responsável pelas ações de assistência social, será
financiada por toda a sociedade.
É muito cômodo para os governos empurrar essa conta para
usuários do transporte público coletivo de passageiros, ao invés de cumprir a Constituição
Federal e estabelecer a cada ano um percentual do orçamento público para
financiar essas gratuidades sociais.
A omissão e a falta de interesse governamental sobre este
assunto ficaram claramente demonstradas recentemente na sanção da Lei nº 12.587/2012,
onde os parágrafos 1º e 3º do artigo 8º foram vetados pela Presidência da
República. O parágrafo 1º dizia que as concessões de benefícios tarifários a
uma classe ou coletividade de usuários nos serviços de transporte público
coletivo de passageiros deveriam ser custeadas com recursos financeiros
específicos, sendo proibido atribuir o referido custeio aos usuários do
respectivo serviço. Já o parágrafo 3º estabelecia que o não cumprimento da
regra, implicaria no enquadramento dos administradores públicos na lei de
responsabilidade fiscal.
Toda a sociedade usufrui do transporte público urbano e não
só seus usuários. Bem como o transporte público como serviço essencial, conforme
rege a Constituição, deveria ser garantido o acesso a todos os brasileiros.
Infelizmente isso não acontece, pois um grande número de brasileiros não o
utiliza de forma regular por não ter dinheiro para pagar as passagens. É uma
verdadeira exclusão social. O barateamento das tarifas do transporte urbano
deve ser priorizado, e passa pelo custeio das atuais gratuidades com recursos
dos orçamentos públicos bem como da instauração de uma justiça tributária e da
fluidez do Transporte Público no transito.
Nazareno Stanislau Affonso - Coordenador do Escritório da ANTP / Brasília e Coordenador Nacional do MDT - Movimento Nacional pelo Direito ao Transporte Público de Qualidade