10/01/2014 08:15 - Valor Econômico
ANDRÉ LARA RESENDE
Eu contava passar o fim de ano com um casal amigo na
Patagônia, mas acabei obrigado a ficar em São Paulo. A cidade era outra, muito
diferente da de antes do Natal. Podia-se caminhar. Fui, com mulher e filhos,
tomar café da manhã numa padaria do Itaim. Atravessamos - a pé - a ponte da
Cidade Jardim. São 25 anos de São Paulo e a primeira vez que atravesso sem
automóvel a ponte, por onde passo quase diariamente. A cidade congestionada
inviabiliza a razão de ser do transporte individual, que é o conforto e a
eficiência, mas seu pecado maior é tornar a caminhada tão desagradável e
perigosa que ela deixa de ser uma opção.
A essência das cidades é ser o lugar de interação entre
conhecidos e desconhecidos, favorecer o contato pessoal, que, mesmo na era
virtual, é fundamental para a civilidade e insubstituível como estímulo à
criatividade. A civilização do automóvel levou à dispersão, à redução da
densidade urbana. O modelo está exaurido. Investir na expansão da malha viária
urbana não é solução. Ao contrário, significa aumentar o subsídio ao uso do
automóvel. Reza a chamada lei fundamental dos congestionamentos que para todo
aumento da malha viária há um aumento proporcional do número de quilômetros
rodados. O investimento na malha viária nunca será capaz de resolver o
congestionamento, porque é um estímulo ao uso do automóvel. É dinheiro público
usado para subsidiar o transporte individual que hoje paralisa as cidades. O
pior é que uso do automóvel impede o surgimento de alternativas, pois expulsa o
pedestre, o ciclista e faz que o transporte coletivo de superfície seja
absurdamente lento e ineficiente.
Como deve estar percebendo a duras penas o prefeito Haddad,
para mudar é preciso vencer hábitos arraigados. O imaginário coletivo ainda vê
a civilização do automóvel como o paradigma da vida moderna e bem-sucedida. Sem
uma visão alternativa, a reação parece ainda ser democraticamente
intransponível. É preciso criar a visão de uma vida diferente, do que pode ser
a cidade livre do tumor invasivo em que se transformou o automóvel. O pedágio
urbano, que já está em prática em várias cidades do mundo, por aqui ainda
enfrenta resistências que a demagogia não tem coragem de enfrentar. Já que
encarar o problema de peito aberto é considerado politicamente suicida,
deveríamos escolher alguns projetos piloto para servir de exemplos, para
demonstrar que a vida na cidade pode ser melhor.
Veja-se o caso da High Line, estrada de ferro elevada, no
West Side de Manhattan, em Nova York, abandonada há décadas, que se transformou
num parque suspenso, hoje símbolo da renovação urbana bem-sucedida. Não há
atualmente no mundo projeto de renovação urbana inteligente que não contemple
"algo inspirado na High Line". O governo inglês acaba de aprovar
fundos para a construção de uma ponte ajardinada sobre o Tâmisa. As avenidas
ajardinadas para caminhadas eram comum nas grandes cidades, até que fossem destruídas
- como o triste caso da avenida Afonso Pena, em Belo Horizonte, que teve as
suas lindas árvores arrancadas - para dar espaço ao automóvel. Onde elas
sobreviveram, como o caso da La Rambla, em Barcelona, são contribuição
fundamental para apelo e o sucesso da cidade.
No século XIX, as grandes cidades foram renovadas, largas
avenidas abertas e parques públicos criados para adaptá-las à força da
industrialização e à revolução dos transportes. A partir do último quarto do
século XX, o modelo começou a dar sinais de exaustão e as cidades, com raras
exceções, foram deformadas em nome do automóvel. As cidades bem-sucedidas do
século XXI serão diferentes, voltadas para o encontro, para o convívio das
diferenças, que é a essência da vida urbana. A cidade do futuro é a cidade da
criatividade, do que o urbanista Richard Florida chama de "a classe
criativa", que floresce com o convívio. Terão calçadas largas, avenidas
arborizadas para caminhadas, bares e restaurantes. Os jardins e os calçadões
substituirão o asfalto dos automóveis, assim como já começaram a tomar o lugar
dos armazéns, das fábricas e dos trilhos abandonados.
A vida nas ruas é tão ou mais importante para o sucesso da
cidade do que as atrações culturais e os marcos arquitetônicos. A qualidade de
vida é, cada vez mais, o fator determinante na escolha de onde viver. Num
círculo virtuoso de civilidade, convívio e criatividade, pessoas qualificadas
querem viver onde há qualidade de vida e a qualidade de vida melhora onde há
pessoas qualificadas. Não se deve confundir a cidade aberta ao convívio com a
cidade totalmente planejada, estratificada, sem espontaneidade, que impede
"os usos da desordem", na feliz expressão de Richard Sennett. É um
erro recorrente, na tentativa de revitalização urbana, confundir a estrutura
física da cidade com a verdadeira cidade, que é o espaço do convívio entre as
diferenças. Grandes projetos de infraestrutura são menos relevantes do que
podem parecer. Sucesso exige infraestrutura, mas a infraestrutura não garante o
sucesso.
Passo então à minha sugestão de projeto piloto para São
Paulo: fechar o Itaim para os automóveis. Apesar do trânsito infernal, o Itaim
resiste como um dos poucos bairros da cidade onde ainda se pode caminhar, onde
há vida nas ruas, fora dos automóveis. Fato que só se explica porque o bairro é
delimitado por quatro grandes artérias viárias, as avenidas 9 de Julho, Faria
Lima, Juscelino Kubitschek e São Gabriel, e não é cruzado por nenhuma grande
avenida.
O acesso de automóvel seria restrito, só para moradores com
garagem, a velocidade limitada a 20 km por hora, por vias estreitadas para dar
lugar aos calçadões ajardinados e arborizados. Ônibus só em duas vias
transversais exclusivas. Os parques e os calçadões melhoram a qualidade de
vida, valorizam os imóveis e aumentam a arrecadação de impostos. Será preciso
detalhar a proposta, pensar em como tratar a questão das entregas para
restaurantes e o comércio. Novas garagens, só na periferia do bairro. Sabemos
que o diabo está nos detalhes, mas por isso mesmo não se pode deixar que eles
levem à paralisia.
Ousado? Sim. Politicamente impossível? Não creio. O prefeito
de Paris acaba de implantar algo muito mais polêmico: transformou as vias
expressas nas margens do Sena, que eram as principais artérias do trânsito na
cidade, em calçadões ajardinados para "promenades". A reação inicial
foi digna da - injusta - fama do mau humor parisiense, mas hoje, alguns meses
depois de sua inauguração, até os motoristas de táxi parecem aprovar, apesar de
não abrir mão do direito de resmungar.
André Lara Resende é
economista