05/07/2013 07:00 - Valor Econômico
ANDRÉ LARA RESENDE
Nenhuma liderança soube captar e expressar o mal-estar contemporâneo.
Este é provavelmente o seu elemento novo: a internet viabiliza a mobilização
antes que surjam as lideranças
Na tentativa de interpretar o protesto das ruas nas grandes
cidades brasileiras, há uma natural tentação de fazer um paralelo com os
movimentos similares nos países avançados, sobretudo da Europa, mas também nos
EUA - Occupy Wall Street - assim como com os da chamada Primavera Árabe. As
condições objetivas são, contudo, muito distintas. A Primavera Árabe é um
fenômeno de países totalitários, onde não há representação democrática. Não é o
caso do Brasil. Na Europa, sobretudo nos países mediterrâneos periféricos mais
atingidos pelos efeitos da crise financeira de 2008, houve uma drástica piora
das condições de vida. O desemprego, especialmente entre os jovens, subiu para
níveis dramáticos. Mais uma vez, não é o caso do Brasil.
Nem os críticos mais radicais ousariam argumentar que o
Brasil de hoje não se enquadra nos moldes das democracias representativas do
século XX. Podem-se culpar os desacertos da política econômica nos últimos seis
anos. Embora devam ficar mais evidentes daqui para a frente, os efeitos
negativos da incompetência da política econômica só muito recentemente se fizeram
sentir. Fato é que, desde a estabilização do processo inflacionário crônico,
houve grandes avanços nas condições econômicas de vida dos brasileiros. Nos
últimos 20 anos, houve ganho substancial de renda entre os mais pobres. Ao
contrário do que ocorreu em outras partes do mundo, até mesmo nos países
avançados, a distribuição de renda melhorou. O desemprego está em seu mínimo
histórico.
É verdade que a inflação, especialmente a de alimentos, que
se faz sentir mais intensamente pelos assalariados, está em alta. Por mais
consciente que se seja em relação aos riscos, políticos e econômicos, da
inflação, é difícil atribuir à inflação o papel de catalisadora do movimento
das ruas nas últimas semanas. Só agora a taxa de inflação superou o teto da
banda - excessivamente generosa, é verdade - da meta do Banco Central.
Os dois elementos tradicionais da insatisfação popular -
dificuldades econômicas e falta de representação democrática - definitivamente
não estão presentes no Brasil de hoje. Inflação, desemprego, autoritarismo e
falta de liberdade de expressão não podem ser invocados para explicar a
explosão popular. O fenômeno é, portanto, novo. Procurar interpretá-lo de
acordo com os cânones do passado parece-me o caminho certo para não o
compreender.
O movimento de maio de 1968 na França tem sido lembrado
diante das manifestações das últimas semanas. O paralelo se justifica, pois
maio de 68 é o paradigma do movimento sem causas claras nem objetivos bem
definidos, uma combustão espontânea surpreendente, que ocorre em condições
políticas e econômicas relativamente favoráveis. Movimento que, uma vez
detonado, canaliza um sentimento de frustração difusa - um "malaise"-
com o estado das coisas, com tudo e todos, com a vida em geral.
A novidade mais evidente em relação a maio de 68 na França é
a internet e as redes sociais. Embora não tivesse expressão clara na vida
pública francesa, a insatisfação difusa poderia ter sido diagnosticada, ao
menos entre os universitários parisienses. No Brasil de hoje, a irritação
difusa podia ser claramente percebida na internet e nas redes sociais. O
movimento pelo passe livre fez com que este mal-estar transbordasse do virtual
para a realidade das ruas. Tanto os universitários franceses de 68, quanto os
internautas do Brasil de hoje, não representam exatamente o que se poderia
chamar de as massas ou o povão, mas funcionam igualmente como sensores e
catalisadores de frustrações comuns.
Quais as causas do mal-estar difuso no Brasil de hoje, que
transbordou da internet para a realidade e levou a população às ruas?
Parecem ter dois eixos principais. O primeiro, e mais
evidente, é uma crise de representação. A sociedade não se reconhece nos
poderes constituídos - Executivo, Legislativo e Judiciário - em todas suas
esferas. O segundo é que o projeto do Estado brasileiro não corresponde mais
aos anseios da população. O projeto do Estado, e não do governo, é importante
que se note, pois a questão transcende governos e oposições. Este hiato entre o
projeto do Estado e a sociedade explica em grande parte a crise de
representação.
O Estado brasileiro mantém-se preso a um projeto cuja
formulação é do início da segunda metade do século passado. Um projeto que
combina uma rede de proteção social com a industrialização forçada. A rede de
proteção social inspirou-se nas reformas das economias capitalistas da Europa,
entre as duas Grandes Guerras, reforçadas após a crise dos anos 1930. Foi
introduzida no Brasil por Getúlio Vargas, para a organização do mercado de
trabalho, baseado no modelo da Itália de Mussolini. A industrialização forçada
através da substituição de importações, introduzida por Juscelino Kubitschek
nos anos 1950, e reforçada pelo regime militar nos anos 1970, tem raízes mais
autóctones. Suas origens intelectuais são o desenvolvimentismo latino-americano
dos anos 1950, que defendia a ação direta do Estado, como empresário e
planejador, para acelerar a industrialização.
Não nos interessa aqui fazer a análise crítica do projeto
desenvolvimentista que, com altos e baixos, aos trancos e barrancos, cumpriu
seu papel e levou o país às portas da modernidade neste início de século. Basta
ressaltar que o desenvolvimentismo, em seus dois pilares - a industrialização
forçada e a rede de proteção social - dependem da capacidade do Estado de extrair
recursos da sociedade. Recursos que devem ser utilizados para financiar o
investimento público e os benefícios da proteção social.
Diante da baixa taxa de poupança do setor privado e da
precariedade da estrutura tributária do Estado, a inflação transferiu os
recursos da sociedade para o Estado, até que nos anos 1980 viesse a se tornar
completamente disfuncional. Com a inflação estabilizada, a partir do início dos
anos 1990, o Estado se reorganizou para arrecadar por via fiscal também os
recursos que extraía através do imposto inflacionário. A carga fiscal passou de
menos de 15% da renda nacional, no início dos anos 1950, para em torno de 25%,
nas décadas de 1970 a 90, até saltar para os atuais 36%, depois da
estabilização da inflação. O Brasil tem hoje uma carga tributária comparável,
ou mesmo superior, à das economias mais avançadas.
Apesar de extrair da sociedade mais de um terço da renda
nacional, o Estado perdeu a capacidade de realizar seu projeto. Não o consegue
entregar porque, apesar de arrecadar 36% da renda nacional, investe menos de 7%
do que arrecada, ou seja, menos de 3% da renda nacional. Para onde vão os
outros 93% dos quase 40% da renda que extrai da sociedade? Parte, para a rede
de proteção e assistência social, que se expandiu muito além do mercado de
trabalho organizado, mas, sobretudo, para sua própria operação. O Estado
brasileiro tornou-se um sorvedouro de recursos, cujo principal objetivo é
financiar a si mesmo. Os sinais dessa situação estão tão evidentes, que não é
preciso conhecer e analisar os números. O Executivo, com 39 ministérios
ausentes e inoperantes; o Legislativo, do qual só se tem más notícias e frustrações;
o Judiciário pomposo e exasperadoramente lento.
O Estado foi também incapaz de perceber que seu projeto não
corresponde mais ao que deseja a sociedade. O modelo desenvolvimentista do
século passado tinha dois pilares. Primeiro, a convicção de que a
industrialização era o único caminho para escapar do subdesenvolvimento. Países
de economia primário-exportadora nunca poderiam almejar alcançar o estágio de
desenvolvimento das economias industrializadas. Segundo, a convicção de que o
capitalismo moderno exige a intervenção do Estado em três dimensões: para
estabilizar as crises cíclicas das economias de mercado; para prover uma rede
de proteção social; e, no caso dos países subdesenvolvidos, para liderar o
processo de industrialização acelerada. As duas primeiras dimensões da ação do
Estado são parte do consenso formado depois da crise dos anos 1930. A terceira
decorre do sucesso do planejamento central soviético em transformar uma
economia agrária, semifeudal, numa potência industrial em poucas décadas. A
proteção tarifária do mercado interno, com o objetivo de proteger a indústria
nascente e promover a substituição de importações, completava o cardápio com um
toque de nacionalismo.
O nacional- desenvolvimentismo, fermentado nos anos 1950,
teve sua primeira formulação como plano de ação do governo na proposta de
Roberto Simonsen. Embora sempre combatido pelos defensores mais radicais do
liberalismo econômico, como Eugênio Gudin, autor de famosa polêmica com Roberto
Simonsen, e posteriormente por Roberto Campos, foi adotado tanto pela esquerda,
como pela direita. Seu período de maior sucesso foi justamente o do
"milagre econômico" do regime militar.
Na década de 1980, a inflação se acelera e se torna
definitivamente disfuncional. As sucessivas e fracassadas tentativas de
estabilização passam a dominar o cenário econômico. Com a estabilização do
real, a partir da segunda metade da década de 1990, ainda com algum
constrangimento em reconhecer que o nacional-desenvolvimentismo já não fazia
sentido num mundo integrado pela globalização, o país parecia estar em busca de
novos rumos. A vitória do PT foi, sem dúvida, parte da expressão desse anseio
de mudança.
Nos dois primeiros anos do governo Lula, a política
econômica foi essencialmente pautada pela necessidade de acalmar os mercados
financeiros, sempre conservadores, assustados com a perspectiva de uma virada
radical à esquerda. A partir daí, o PT passou a pôr em prática o seu projeto.
Um projeto muito diferente do que defendia enquanto oposição. O projeto do PT
no governo, frustrando as expectativas dos que esperavam mudanças, muito mais
do que o aparente continuísmo dos primeiros anos do governo Lula, revelou-se
flagrantemente retrógrado. É essencialmente a volta do
nacional-desenvolvimentismo, inspirado no período em este que foi mais
bem-sucedido: durante regime militar. A crise internacional de 2008 serviu para
que o governo abandonasse o temor de desagradar aos mercados financeiros e, sob
pretexto de fazer política macroeconômica anticíclica, promovesse
definitivamente a volta do nacional-desenvolvimentismo estatal.
O PT acrescentou dois elementos novos em relação ao projeto
nacional-desenvolvimentista do regime militar: a ampliação da rede de proteção
social, com o Bolsa Família, e o loteamento do Estado. A ampliação da rede de
proteção social se justifica, tanto como uma inciativa capaz de romper o
impasse da pobreza absoluta, em que, apesar dos avanços da economia, grande
parte da população brasileira se via aprisionada, quanto como forma de manter um
mínimo de coerência com seu discurso histórico. Já a lógica por trás do
loteamento do Estado é puramente pragmática. Ao contrário do regime militar,
que não precisava de alianças difusas, o PT utilizou o loteamento do Estado, em
todas suas instâncias, como moeda de troca para compor uma ampla base de
sustentação. Sem nenhum pudor ideológico, juntou o sindicalismo de suas raízes
com o fisiologismo do que já foi chamado de Centrão, atualmente representado
principalmente pelo PMDB, no qual se encontra toda sorte de homens públicos,
que, independentemente de suas origens, perderam suas convicções ao longo da
estrada e hoje são essencialmente cínicos.
Há ainda um terceiro elemento do projeto de poder do PT.
Trata-se da eleição de uma parte do empresariado como aliada estratégica. Tais
aliados têm acesso privilegiado ao crédito favorecido dos bancos públicos e,
sobretudo, à boa vontade do governo, para crescerem, absorverem empresas em
dificuldades, consolidarem suas posições oligopolísticas no mercado interno e
se aventurarem internacionalmente como "campeões nacionais".
A combinação de um projeto anacrônico com o loteamento do
Estado entre o sindicalismo e o fisiologismo político, ao contrário do
pretendido, levou à sobrevalorização cambial e à desindustrialização. Só foi
possível sustentar um crescimento econômico medíocre enquanto durou a alta dos
preços dos produtos primários, puxados pela demanda da China. A ineficiência do
Estado nas suas funções básicas - segurança, infraestrutura, saúde e educação -
agravou-se significativamente. Ineficiência realçada pela redução da pobreza
absoluta na população, que aumentou a demanda por serviços de qualidade.
A insatisfação difusa dos protestos pode vir a ser catalizadora de uma
mudança profunda de rumo, que abra o caminho para um novo desenvolvimento (na
foto, manifestantes sobem ao teto do Congresso)
Loteado e inadimplente em suas funções essenciais, enquanto
absorvia parcela cada vez maior da renda nacional para sua própria operação, o
Estado passou a ser visto como um ilegítimo expropriador de recursos. Não
apenas incapaz de devolver à sociedade o mínimo que dele se espera, mas também
um criador de dificuldades. A combinação de uma excessiva regulamentação de
todas as esferas da vida, com a truculência e a arrogância de seus agentes,
consolidou o estranhamento da sociedade. Em todas as suas esferas, o Estado
deixou de ser percebido como um aliado, representativo e prestador de serviço.
Passou a ser visto como um insaciável expropriador, cujo único objetivo é criar
vantagens para os que dele fazem parte, enquanto impõe dificuldades e cria
obrigações para o resto da população. O contraste da realidade com o ufanismo
da propaganda oficial só agravou o estranhamento e consolidou o divórcio entre
a população e os que deveriam ser seus representantes e servidores.
A insatisfação com a democracia representativa não é um
fenômeno exclusivamente brasileiro. As razões dessa insatisfação ainda não
estão claras, mas é possível que o modelo de representação democrática,
constituído há dois séculos para sociedades menores e mais homogêneas, tenha
deixado de cumprir seu papel num mundo interligado de 7 bilhões de pessoas, e precise
ser revisto. O debate público deslocou-se das esferas tradicionais da política
para a internet e as redes sociais. Ameaçada pelo crescimento da internet e
habituada ao seu papel de agente da política tradicional, a mídia não percebeu
que o debate havia se deslocado.
No caso brasileiro, perplexa com sua aparente falta de
repercussão e pressionada financeiramente pela competição da internet, uma
parte da mídia desistiu do jornalismo de interesse público e passou a fazer um
jornalismo de puro entretenimento. Mesmo os que resistiram, cederam, em maior
ou menor escala, à lógica dos escândalos. Foram incapazes de compreender a
razão da sua falta de repercussão, pois não se deram conta de que o público e o
debate haviam se deslocado para a internet. Surpreendida pelo movimento de
protestos, num primeiro momento, a mídia não foi capaz de avaliar a extensão da
insatisfação. Transformou-se ela própria em alvo da irritação popular. Em
seguida, aderiu sem convencer, sempre a reboque do debate e da mobilização através
da internet. A favor da mídia, diga-se que ninguém foi capaz de captar a
insatisfação latente antes da eclosão do movimento das ruas. As pesquisas
apontavam, até muito recentemente, grande apoio à presidente da República,
considerada praticamente imbatível, até mesmo por seus eventuais adversários
nas próximas eleições. Nenhuma liderança soube captar e expressar o mal-estar
contemporâneo. Este é provavelmente o seu elemento novo: a internet viabiliza a
mobilização antes que surjam as lideranças. Tanto as possibilidades como os
riscos são novos.
O projeto nacional-desenvolvimentista combina o consumismo
das economias capitalistas avançadas com o produtivismo soviético. Ambos
pressupõem que o crescimento material é o objetivo final da atividade humana. Aí
está a essência de seu caráter anacrônico. Os avanços da informática permitiram
a coleta de um volume extraordinário de evidências sobre a psicologia e os
componentes do bem-estar. A relação entre renda e bem-estar só é claramente
positiva até um nível relativamente baixo de renda, capaz de atender às
necessidades básicas da vida. A partir daí, o aumento do bem-estar está
associado ao que se pode chamar de qualidade de vida, cujos elementos
fundamentais são o tempo com a família e os amigos, o sentido de comunidade e
confiança nos concidadãos, a saúde e a ausência de estresse emocional.
Os estudos da moderna psicologia comprovam aquilo que de uma
forma ou de outra, mais ou menos conscientemente, intuímos todos: nossa
insaciabilidade de bens materiais advém do fato de que o bem-estar que nos
trazem é efêmero. Para manter a sensação de bem-estar, precisamos de mais e
novas aquisições. O consumismo material tem elementos parecidos com o do uso de
substâncias entorpecentes que causam dependência física e psicológica.
No mundo todo, a população parece já ter intuído a exaustão
do modelo consumista do século XX, mas ainda não encontrou nas esferas da
política tradicional a capacidade de participar da formulação das alternativas.
Apegada a fórmulas feitas, a política continua pautada pelos temas e objetivos
de um mundo que não corresponde mais à realidade de hoje. As grandes propostas
totalizantes já não fazem sentido. O nacionalismo, a obsessão com o crescimento
material, a ênfase no consumo supérfluo, os grandes embates ideológicos, temas
que dominaram a política nos últimos dois séculos, perderam importância. Hoje,
o que importa são questões concretas, relativas ao cotidiano, questões de
eficiência administrativa para garantir a qualidade de vida.
É significativo que os protestos no Brasil tenham começado
com a reivindicação do passe livre nos transportes públicos urbanos. A questão
da mobilidade nas grandes metrópoles é paradigmática da exaustão do modelo
produtivista-consumista. A indústria automobilística foi o pilar da
industrialização desenvolvimentista e o automóvel o símbolo supremo da
aspiração consumista. O inferno do trânsito nas grandes cidades, que se agrava
quanto mais bem-sucedido é o projeto desenvolvimentista, é a expressão máxima
da completa inviabilidade de prosseguir sem uma revisão profunda de objetivos.
Ao que parece, a sociedade intuiu a falência do projeto do século passado antes
que o Estado e aqueles que deveriam representá-la - governo e oposição,
Executivo, Legislativo e imprensa - tenham se dado conta de que hoje trabalham
com objetivos anacrônicos.
A insatisfação difusa dos protestos pode vir a ser
catalizadora de uma mudança profunda de rumo, que abra o caminho para um novo
desenvolvimento, não mais baseado exclusivamente no crescimento do consumo
material, mas na qualidade de vida. Para isso, é preciso que surjam lideranças
capazes de exprimir, formular e executar o novo desenvolvimento.
André Lara Resendeé economista. Este texto será apresentado na Festa Literária de Paraty (Flip), em debate com o filósofo Marcos Nobre, que ocorre neste sábado.