25/10/2015 09:00 - O Estado de SP
FRAYA FREHSE
Pesquisa recente da Organização para Cooperação e Desenvolvimento
Econômico sobre o bem-estar em seus 34 países-membros, e também na Rússia e no Brasil,
traz um dado preocupante para aqueles que, talvez como o leitor e decerto como eu,
gostam de flanar a pé por ruas, ladeiras, praças e parques públicos de nosso país.
Segundo a OECD, em 2014 apenas 35% da população brasileira se sentia segura ao
andar à noite na cidade ou na área em que vive. Somos bem menos numerosos que os
mais de 85% de destemidos noruegueses e 85% de espanhóis, e mais rarefeitos
também que os 50 a 55% de mexicanos e chilenos incorporados à investigação.
Mais próximos de nós, só aproximadamente 48% dos húngaros.
Como o dado integra, afora latrocínios e ataques físicos "autorrelatados” (indicadores utilizados pela organização para medir a "segurança pessoal” das populações), é quase inevitável colocar em xeque o próprio gosto por andar pela cidade. O prazer resiste ao medo? Como a vida cotidiana em nossas maiores urbes transcorre sob o temor de assaltos, roubos e assassinatos reais ou imaginários, o dado da OECD parece autoevidente. É tentador menear com a cabeça e suspirar em tom de lamento: "coisas da violência no Brasil...”
Mas nada é tão simples, ensinam a sociologia, a antropologia
e a história. Que pluralidade humana e espacial se esconde por detrás da
porcentagem brasileira, da cidade e da "área em que você vive”? São referências
decisivas num mundo urbano como o brasileiro, social, cultural e demograficamente
tão diversificado e desigual. E não somente no Brasil de 2014. De acordo com a
socióloga alemã Renate Ruhne, no seu livro Macht
Raum Geschlecht ("Espaço-Poder-Gênero”, em tradução livre), de 2003, mulheres
se sentem bem mais inseguras que homens nos espaços públicos urbanos alemães –
a despeito do investimento sistemático que o poder público desde os anos 1980 vem
fazendo em iluminação pública, lugares exclusivos de estacionamento e no
incentivo ao uso misto de ruas, passarelas, estações de metrô, parques, etc.,
para não falar de descontos em táxis noturnos. Tudo isso na mesma Alemanha que comparece
com quase 80% de "sentimentos de segurança” na OECD.
Apesar da fragilidade metodológica, o dado trazido pela
organização instiga à reflexão sobre como os brasileiros sentem ruas, praças, parques
de acesso legal irrestrito. Ora, a associação entre insegurança e espaço
público é concepção recente, no Brasil urbano. Ao menos em alguns jornais
paulistanos, a imagem da rua como lugar de perigo em função da violência só
ganha vigor nos anos 1980.
De fato, até no mínimo o final da escravidão africana (1888), andar por São Paulo com regularidade era atributo quase exclusivo de gente escrava, liberta ou livre envolvida nos ócios e negócios do trabalho braçal que sustentava as casas senhoriais. Já entre sinhás e sinhôs, o ritmo era o da excepcionalidade ou periodicidade das missas e festas públicas, das visitas "a pagar” ou do teatro de ópera e, no caso de rapazes, da botica e da Academia de Direito. Sinônimos de rua era discrição, no caso das mulheres de prol; bravata, no caso dos homens "de qualidade”. Lugar de insegurança? Os documentos silenciam.
São os ventos da modernidade oitocentista que trazem a valorização
da rua como lugar onde supostamente todos queriam estar. Dentre os seus
porta-vozes, o dândi e o flâneur da literatura europeia. Difícil fazer senhoras
e senhoritas paulistanas de elite gostarem de andar por ali, sobretudo a pé; e
o transeunte, personagem novo na cidade, só se queixa, nos jornais, do "estado”
das ruas.
À luz dessas referências, a imagem da rua perigosa evidencia sua parca idade. E seu poder. Ela hoje domina o nosso imaginário, não importa a classe, o credo, a idade ou o gênero. Prensados por um fogo cruzado entre cidades que se expandem demograficamente multiplicando pobreza e desigualdade e uma mídia que difunde estatísticas insufladoras de angústia e pavor, é tentador para os brasileiros "de cidade” – como escreveu Gilberto Freyre – sentirmos que a rua é e sempre foi lugar a ser evitado pela insegurança. E a vivermos esse espaço assim.
Como mudar isso?, talvez pergunte o leitor que abriga em si um flâneur. Depois de tanta história, sociedade e cultura, nada de engrossar o coro da segurança pública e da infraestrutura urbana. A insegurança das mulheres nas ruas alemãs mostra que proteção não é sinônimo de destemor.Como, ao ser encarado, o fantasma se mostra sempre menor do que imaginado, nada melhor que se lançar a ruas e praças e, por meio da regularidade do uso, familiarizar-se com a experiência única da convivência com a diferença que só a rua,mais que qualquer outro espaço no Brasil, tem a nos oferecer.
Fraya Frehse é Professora
de Sociologia da USP e autora de "Ô da rua! O transeunte e o advento da
modernidade em São Paulo (EDUSP)”
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Defensores dos direitos de pedestres se reuniram
com o secretário de Transportes de São Paulo, Jilmar Tatto, para discutir a criação
de um grupo temático sobre a mobilidade a pé na cidade. Há hoje quatro grupos,
nenhum voltado a pedestres.