Mais cinco décadas de espera

30/08/2015 07:20 - O Globo

A crise econômica deixou mais longe o sonho de milhões de brasileiros: ficou mais difícil conquistar a casa própria. O aumento do custo de vida e o crédito escasso e caro — que dificultam o acesso da classe média —, além de problemas no programa federal de moradia popular, o Minha Casa Minha Vida (MCMV), dão uma nova dimensão ao desafio da habitação. A piora do cenário atinge quem procura um imóvel para comprar, para alugar e até os que se beneficiam de subsídios públicos. E, segundo especialistas, o risco é que a crise resulte em aumento do déficit habitacional do país, estimado, hoje, em 5,43 milhões de domicílios. Mantidas as condições atuais, levantamento feito pela coordenadora de Projetos da Construção da FGV, Ana Maria Castelo, mostra que o país levará até 50 anos para reduzir este número a um patamar "administrável”, na faixa de um milhão de casas. Isso apesar de todas as melhorias obtidas com a expansão do programa de moradia popular nos últimos anos.

— Levaremos ao menos 50 anos para chegar a um milhão de moradias. O maior desafio está nas regiões metropolitanas — diz Ana Maria.

AO MENOS 1,2 MILHÃO DE NOVAS CASAS AO ANO

O cálculo do déficit habitacional abrange famílias que vivem em condições precárias, as que dividem a mesma casa por falta de opção, as que sofrem com o ônus excessivo do aluguel — quando o pagamento é igual ou superior a 30% da renda de famílias que ganham até três salários mínimos (R$ 2.364) — e as famílias que vivem em imóvel alugado com mais de três pessoas em cada cômodo. Na prática, o indicador tem peso expressivo da moradia popular, mas pode incluir a classe média nas famílias que dividem a casa.

Claudia Magalhães Eloy, pesquisadora do Laboratório de Habitação da FAU/USP, explica que a crise afeta o déficit habitacional de diversas formas:

— A queda na renda e o aumento nos preços de locação pressionam o ônus excessivo de aluguel. Com renda menor, esse gasto compromete mais o orçamento. Já quem perde o emprego pode voltar a morar com a família e aumentar os números de coabitação. Ao mesmo tempo, os governos perdem arrecadação, e isso compromete serviços essenciais, como saúde e escolas, que seriam levados a programas de moradia popular.

Mesmo sem considerar os efeitos da crise atual, estudos preliminares feitos por Claudia e outros dois pesquisadores apontam que já houve aumento no déficit em 2013, último dado disponível, em termos absolutos, puxado principalmente pelo peso maior do aluguel no orçamento, diante da alta dos preços.

Um estudo encomendado pelo Ministério das Cidades mostra que, somente para que o indicador não piore, o país precisa construir 1,2 milhão de casas a cada ano, numa estimativa que abrange todas as classes e tipos de residência. Desde que foi criado, em 2009, o Minha Casa Minha Vida já contratou a construção de 4 milhões de unidades, o que representa média de 666 mil a cada ano. Segundo estimativa da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC), foram construídas 1,62 milhão de unidades no país no ano passado, incluindo todas as categorias de imóveis residenciais.

O Ministério das Cidades destaca que a terceira fase do Minha Casa Minha Vida será lançada em breve com a meta de contratar mais três milhões de unidades habitacionais. "Com isso, o objetivo de contratar sete milhões de casas, até 2018, será cumprido e cerca de 28 milhões de pessoas serão beneficiadas com a casa própria”, informou a pasta.

Com o agravamento da crise, porém, já são frequentes os relatos entre prefeituras e construtoras de atrasos no repasse de recursos para obras do programa de habitação popular. O governo atribui as dificuldades ao aperto nas contas.

— Nesse ambiente de ajuste fiscal, tivemos que repactuar com o setor da construção os prazos para pagamentos de obras que já estão prestes a serem concluídas e diminuir o ritmo das que estão mais no início — afirma a secretária de Habitação do Ministério das Cidades, Inês Magalhães.

Para especialistas como Sérgio Magalhães, presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil, a solução para moradia popular deve incluir alternativas.

— Um país como o Brasil não pode ter uma solução única como o Minha Casa Minha Vida. O país desistiu de investir em urbanização de favelas e em recuperar habitações — avalia.

MAIOR DESPESA COM MORADIA DESDE 2006

Para a classe média, o cenário causa apreensão. O próprio custo de manter uma moradia está subindo: o peso dos gastos de aluguel, condomínio, taxa de água e esgoto e luz no orçamento subiu 12% em um ano, passando de 9,84% em julho de 2014 para 11,07% em julho deste ano. É a maior fatia no orçamento desde junho de 2006.

O valor do aluguel foi decisivo para a família do economista Pedro Alex Alves de Macedo. No ano passado, ele procurava um imóvel de até R$ 3 mil por mês, mas aceitou pagar R$ 3.500 por não encontrar o que procurava. Com a queda recente, ele vai se mudar para um mais barato, de R$ 3 mil:

— O aluguel é nosso principal gasto. Vamos poder fazer uma reserva financeira.

O alívio com a recente queda nos preços dos imóveis — após longa escalada que suscitou discussões sobre o risco de uma bolha imobiliária no país — foi acompanhado de aperto nas condições de crédito, com financiamento mais restrito e caro. Até bancos públicos, como a Caixa, elevaram juros e passaram a exigir entradas maiores. Segundo dados do Banco Central (BC), em julho, as famílias brasileiras pegaram R$ 8,9 bilhões em financiamentos imobiliários, uma queda de 26,3% em relação a igual mês do ano anterior. De janeiro a julho, o crédito somou R$ 69,9 bilhões, com queda de 6,9% na comparação com o mesmo período de 2014. Especialistas só preveem uma retomada vigorosa em 2017. Hoje, o brasileiro paga, em média, 10,7% ao ano de juros imobiliários: o maior patamar desde agosto de 2011. A piora do cenário foi brusca. Em 2013, as famílias conseguiam taxa média de 7,63% ao ano, segundo levantamento do Banco Central.

Para quem vive de aluguel, o efeito é similar. Em quatro anos, o peso dessa despesa no orçamento subiu 40%. Com base no Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA, a inflação oficial), de julho de 2011 a julho deste ano, a fatia do orçamento destinada ao aluguel passou de 2,88% para 4,05%, o que mostra que o preço subiu mais que a inflação no período. O percentual é baixo porque o cálculo engloba tanto as famílias que pagam quanto as que não pagam aluguel. De modo geral, analistas recomendam que o gasto não ultrapasse um terço do orçamento familiar, mas segundo Leonardo Schneider, vice-presidente do Secovi-Rio, o sindicato da habitação, durante a fase de escalada de preços, esse patamar era facilmente superado pelos inquilinos. Nos últimos meses, porém, os valores começaram a cair, num reflexo da crise.

— O custo da moradia vai continuar pesando mais no orçamento das famílias, com exceção do aluguel. Com a crise e a procura menor, o proprietário tende a dar descontos — afirma o professor de Economia da PUC-Rio Luiz Roberto Cunha.

COM CASA, MAS SEM TRANSPORTE E INFRAESTRUTURA URBANA

"Daqui não saio, daqui ninguém me tira”. A remoção de favelas já foi marchinha de carnaval nos anos 1950. Mas continua atual. O Minha Casa Minha Vida (MCMV), criado em 2009, deu acesso à moradia, mas, muitas vezes, repetiu a fórmula de construção de conjuntos habitacionais em locais distantes e sem infraestrutura, alertam especialistas. Como os imóveis destinados à população mais pobre são construídos em terrenos doados pelas prefeituras, o destino, em geral, são os limites do município, áreas muitas vezes sem uma rede de transporte adequada.

Para a secretária nacional de Habitação do Ministério das Cidades, Inês Magalhães, o desenho é o melhor, a solução possível, dado que é preciso celeridade para socorrer as famílias em locais de risco. Ela argumenta que houve avanços, mas admite que é preciso exigir mais dos municípios em questão de urbanismo, geração de emprego, saúde e educação. E prevê que esses problemas podem ser diluídos com o desenvolvimento das cidades no futuro:

— São questões que, daqui a dois anos, podem ser solucionadas.

A coordenadora de projetos de construção do Ibre/FGV, Ana Maria Castelo, pondera que o programa tem tido papel importante para aumentar o acesso à moradia, mas reconhece que "sozinho não dá conta de tudo”:

— A grande questão é que o custo do terreno é muito alto nos centros urbanos, justamente onde mais falta moradia. O Minha Casa Minha Vida tem sido fundamental para aumentar a habitação, mas realmente precisa ser aperfeiçoado. As parcerias com estados e municípios são muito importantes principalmente para pensar a oferta de infraestrutura. Junto com moradia, é preciso ter infraestrutura de saneamento e energia, mas também de escolas, hospitais e transportes.

‘SOLUÇÃO DE HOJE É O PROBLEMA DE AMANHÃ’

Já o professor da PUC-Rio Rafael Soares Gonçalves, historiador e advogado especialista em legislação urbanística, diz que o governo federal tem se concentrado em áreas muito distantes do centro das cidades, com pouca ou nenhuma infraestrutura.

— É verdade que o Minha Casa Minha Vida traz uma escala pouco antes vista na produção habitacional, mas acho que a solução de hoje é o problema de amanhã. Os moradores têm acesso à moradia, mas não à cidade — observa.

O Rio já viveu isso com a remoção de favelas décadas atrás, quando surgiriam os conjuntos habitacionais. Enéas Cerqueira da Silva passou 40 de seus 45 anos na Cidade de Deus. E lembra do isolamento nos primeiros anos:

— Muita gente penou, quem tinha criação de porco no morro deixou pra trás. A gente ficou um tempão comendo banana, jamelão e chá de capim-limão, que dava por todo o lado.

A distância e a falta de infraestrutura são as principais justificativas de quem opta por ficar em favelas ou áreas de risco. Em Salvador, capital com o maior número de favelas do país, cresce a resistência a programas habitacionais. Na antiga área do porto, em frente à Praça Castro Alves, empreendimentos sofisticados dividem a paisagem com casarões coloniais invadidos por sem-teto. E parte não quer sair dali para projetos do MCMV.

EM FLORIANÓPOLIS, UM PROGRAMA HABITACIONAL COM VISTA PARA O MAR

FLORIANÓPOLIS- A imagem de palafitas construídas à beira d’água remete à população ribeirinha da Amazônia. Mas é na beira- mar da área continental de Florianópolis que uma comunidade se organizou, a partir de ranchos de pesca nos anos 1960, e ainda hoje sobrevive sem esgoto ou abastecimento de água. A realidade das cem famílias da Ponta do Leal, no entanto, está perto de mudar com a chegada do Minha Casa Minha Vida. O município, com o terceiro maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) no país, era a única capital fora do programa. A cidade terá dois empreendimentos do programa de habitação popular. Além dos imóveis na Ponta do Leal, serão construídas 78 unidades no bairro de Jardim Atlântico, que devem ser entregues até o fim do ano, seis anos após o lançamento do Minha Casa Minha Vida.

Se a demora em levar moradias populares para a capital de Santa Catarina está longe de ser motivo de comemoração, os projetos que agora se tornam realidade têm um perfil diferente do que se tornou quase um padrão no programa de habitação: localização em áreas distantes, sem infraestrutura ou acesso de transporte. As duas construções estão em bairros da área continental da cidade. Apesar de não ficarem na ilha, que é a área mais valorizada, têm infraestrutura já constituída e transporte público.

A localização não foi fácil. Foram anos de tentativas de remoção, e houve até abaixo-assinado de moradores do bairro para levá-los a outros municípios. Mesmo com o Minha Casa Minha Vida, a ideia inicial era levar as famílias a outra área. Uma mobilização da comunidade, com apoio do Ministério Público Federal, porém, garantiu que conseguissem um terreno da União e da prefeitura ao lado das palafitas, onde está em construção um conjunto com quatro blocos e 88 apartamentos.

Os imóveis têm vista para o mar, a ilha, e para a Ponte Hercílio Luz, símbolo da cidade, além de varanda com churrasqueira. Aos 54 anos, João Geraldo Carvalho, o mais antigo morador, mora ali há 40 anos.

— Queriam colocar a gente longe, mas a gente mora em Florianópolis e queria ficar aqui. Metade das famílias vive da pesca, é importante ficar na Ponta do Leal — explica o pescador aposentado.

Seu Geraldo vive a expectativa de ter casa com banheiro e cozinha, além de receber correspondência pelos Correios:

— A gente vai ser reconhecido como gente, né? Vai ter comprovante de residência... Daqui, a gente vê as casas e a sociedade lá no fundo.

‘LAVAR PRATOS NO MAR’

Um "bom banheiro” é o principal atrativo do novo apartamento para a faxineira Maria de Fatima Correia, de 60 anos, que vive com a família numa casa sobre palafitas com pedaços de madeira.

— Vamos ter um bom banheiro. Aqui, fizemos um buraco na areia e por ali vai tudo. No calor, o cheiro é muito forte. E uma vizinha colocou uma saída de esgoto embaixo da minha casa — conta Maria de Fatima, que sonha em comprar armários para a cozinha e camas novas.

Na casa da vizinha Maria Teresa dos Santos de Oliveira, os dejetos vão direto para a areia. Seu sonho é lavar a louça e a roupa sem preocupação:

— Mais de uma vez tive de lavar os pratos no mar porque não tinha água. Geralmente, só consigo lavar roupa de noite.

Secretário de Habitação de Florianópolis, Domingos Zancanaro admite a demora no lançamento do programa no município, mas diz que o preço elevado dos terrenos foi um empecilho:

— O novo plano diretor da cidade organizou melhor as áreas de interesse social, e temos três novos projetos para o Minha Casa Minha Vida em fase final.

Arquiteto e urbanista de Florianópolis, Edson Cattoni diz que as iniciativas são um bom exemplo de solução de moradia popular com acesso à infraestrutura. Ele defende acompanhamento constante para evitar que os imóveis sejam vendidos.

Tentações não faltam. Seu Geraldo conta que, antes mesmo de os apartamentos ficarem prontos, de vez em quando aparece um interessado em comprar:

— Após tantos anos de luta, queremos nosso canto, não pegar para vender.

BRASÍLIA TEIMOSA VOLTA A TER PALAFITAS, MAS SOFRE ESPECULAÇÃO IMOBILIÁRIA

RECIFE- Marco do governo petista, Brasília Teimosa ganhou este sobrenome pela insistência de pescadores pobres em permanecer na região, área nobre de Recife. O local foi o primeiro destino visitado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva logo que assumiu o Planalto — e fez questão que todos os ministros o acompanhassem. Foi alvo de um grande programa de reurbanização, mas as palafitas, que já tinham sido erradicadas, voltaram teimosamente a dominar a paisagem.

Nunca passou pela cabeça da cozinheira Valéria Maria de Andrade morar numa casa de retalhos de madeira. Muito menos invadir área pública. Há cinco anos, gastava os R$ 500 que ganhava como cozinheira com o aluguel. O marido, pescador, botava comida na mesa. Até que um dia, descobriu que estava grávida e, para completar, passou a cuidar dos três filhos do primeiro casamento do companheiro, abandonados pela mãe. Com tantas bocas para alimentar, o casal resolveu construir uma palafita, uma das 150 que já foram erguidas no bairro nos últimos anos:

— Nunca tinha morado em palafita, mas decidimos por causa dos meninos. E invadimos. Se a gente pagar aluguel, vou dar o quê para os meus filhos comerem?

O marido de Valéria trocou a rede de pesca pela carteira assinada como porteiro em Boa Viagem. Depois do expediente, varava madrugadas para construir a palafita de 40 metros quadrados e inacreditáveis dois andares só com martelo, serrote e pregos. Um gato na conta de luz garante o lazer: assistir DVDs piratas numa TV de 42 polegadas.

A louça, a casa, as crianças são lavadas com o auxílio de uma cuia. Ela sente falta de um chuveiro, coisa que sempre teve. O vaso sanitário foi colocado sobre um buraco na madeira e o esgoto vai direto para o mar. Com lágrimas, diz que queria um lugar digno para morar:

— Não quero muito, quero só dignidade para os meus filhos. A gente que mora em palafita é muito discriminado. Brasília é teimosa porque as pessoas invadiram e lutaram. Aqui você não passa fome, vai ali e pesca sururu. Não queria sair, mas construir uma casa de chão aqui.

NOS FUNDOS DO SHOPPING CENTER

Valéria já ouviu falar no programa Minha Casa Minha Vida (MCMV), que não existe no bairro — que tem 1.800 pessoas sem moradia e até quatro famílias morando sob o mesmo teto. Mas ela não se vê no programa. Acha que há apenas as modalidades de empréstimo e desconhece que há subsídios maiores para os mais pobres:

— O MCMV virou para os ricos. Só vejo gente de carro nesses edifícios.

A porteira de motel Flávia Tiburcio pagou R$ 2 mil pela habitação de apenas 25 metros quadrados em que vive com o marido e os dois filhos. Num único cômodo, há fogão, mantimentos, a cama do casal e dos filhos. Tudo sob um teto de zinco que torna a casa praticamente uma estufa sob o sol nordestino. Por isso, o lugar predileto da família é a varanda. É lá que ela espera o marido voltar do mar. Apesar de ter trabalho, sente-se frustrada por não poder pagar uma casa de verdade:

— Graças a Deus trabalho com carteira assinada, mas por causa disso cortaram o meu Bolsa Família e não tenho condições de pagar o aluguel.

Outra área de Brasília Teimosa, banhada pelo mar, agora é alvo da especulação imobiliária. Um carro de som pede que as pessoas não vendam suas casas ou o lugar será dominado por prédios de luxo. A resistência tem seu preço: terrenos valem até R$ 500 mil. O aluguel ficou mais caro, às vezes, impossível de pagar.

Palafitas proliferam-se por Recife até no canal aos fundos do shopping de luxo Riomar. Lá mora Leidiane da Silva, de 20 anos. Ela vive no Beco da Zoada, um amontoado de palafitas, com o marido e a filha de 2 anos num cubículo de dois cômodos: quarto e cozinha. A água é estocada num barril. O lugar não tem janela, nem banheiro. A solução é "fazer as necessidades na voadora”: uma sacola plástica de supermercado que é arremessada para bem longe.

— Ter um banheiro é o meu sonho. Tenho fé de que a gente vai conseguir. Um dia a gente vai sair daqui. O que me amedronta é uma dessas madeiras podres cair e eu perder minha filha na maré.