04/01/2024 00:00 - Luiz Carlos M. Néspoli
Luiz Carlos M. Néspoli (Branco) (*)
A Organização Mundial da Saúde divulgou neste dezembro de 2023 o relatório Global Status Report on Road Safety 2023 apresentando os resultados da Década de Ação em Segurança Viária. No lançamento da campanha, a OMS apontava 1,25 milhões de mortes no mundo e, ao final da década, o número encontrado foi de 1,19 milhão, representando uma redução global de 5% no número de mortes no período (algo como 60 mil mortes a menos), importante de qualquer forma, mas muito abaixo da meta pretendida de 50%.
Na apresentação, o relatório considera um resultado satisfatório tendo em vista que houve um crescimento da frota de veículos no mundo inteiro na década. Os resultados, entretanto, foram muito díspares.
O relatório refere-se a informações de 170 países membros (o total é 194), mas que equivalem a 97% da população mundial. Embora o objetivo global estabelecido não tenha sido cumprido no final da década, 108 países que apresentaram resultados positivos alcançaram as seguintes reduções:
A região com maior queda no número de mortes no trânsito foi a da Europa, com 36% de redução, e a com menos resultado foi região das Américas, com 0,1%. No Brasil a redução foi de 25%, saindo de 43.908 mortes em 2011 para 32.716, em 2020. Ficamos a meio caminho da meta, mas isso já foi um grande feito.
De fato, nas cidades brasileiras, onde ocorre o maior número de mortes por acidente de trânsito, o estímulo foi muito forte para que seguissem a campanha lançada pela ONU - a Década de Ações de Segurança Viária. Além desse impulso, realizaram-se seminários, treinamentos e aplicação de alguns tipos de abordagem que produziram bons resultados, como o Programa Vida no Trânsito do Ministério da Saúde e o progrma Road Safety in 10 Countries (RS10). O programa “Visão Zero” só veio a ser implantado mais recentemente no Brasil.
No entanto, dois fatos merecem nossa atenção. O primeiro é que o resultado alcançado pelo Brasil mostra o nosso maior desafio, quando se separa do total de mortes as decorrentes de acidentes com motocicletas. Como ilustra o gráfico seguinte, o número de mortes com motocicleta se manteve inalterado ao longo da década, mas também a partir de 2020, uma situação preocupante porque situado em um patamar muito alto, entre 11 mil e 12 mil mortes por ano.
O segundo aspecto é que a curva das mortes no Brasil teve dois pontos de inflexão notáveis, como ilustra o gráfico seguinte. De 2011 a 2014, o total do número de mortes não tinha uma tendência muito bem definida. A primeira inflexão ocorre em 2014. Entre esse ano e 2019 houve um importante decréscimo (25%). Uma segunda inflexão ocorre em 2019, a partir de quando o número de mortes cresce suavemente (cerca de 6%). Ressalta-se que durante todo este período persistiu a mesma situação das motocicletas.
É possível reconhecer que nos anos de 2011, 2012 e 2013 a campanha da Década de Segurança Viária da ONU ainda não havia sido plenamente disseminada, o que de fato só veio a ocorrer com intensidade no período seguinte. Programas importantes nasceram da mesma fonte que embasou a campanha da ONU: em 2010, é concebido o Programa Vida no Trânsito, que surge a partir do Projeto Road Safety in 10 Countries (RS10), e que é organizado pelo Ministério da Saúde, em parceria com o Ministério das Cidades/Denatran/Semob, a Polícia Rodoviária Federal, o Denit, a OPAS e a Fundação Bloomberg.
O PVT é um programa sistêmico para tratar o acidente de trânsito de forma intersetorial, baseado em fatores de risco, que objetiva organizar e treinar equipes locais. Iniciado em 2011 em cinco cidades brasileiras, depois se expandiu para 26 capitais em 2012 e, posteriormente, em 2013, incorporou cidades com mais de um milhão de habitantes. O Visão Zero, que preconiza que nenhuma morte prematura é aceitável, em que a integração e a proatividade formam a base do método, nascido na Suécia em 1997, só teve início no Brasil mais recentemente. Tanto ele, quanto o PVT, são projetos que organizam e deixam raízes duradouras nas cidades onde foram implantados, que vão perpassando sucessivas gestões municipais.
Em novembro de 2015, o Brasil foi a sede da Segunda Conferência Global de Alto Nível sobre Segurança no Trânsito, que resultou na Declaração de Brasília. O documento aprovado por 120 países apontava caminhos para implementar os compromissos de redução de mortes e lesões no trânsito previstos na Década de Ação das Nações Unidas para a Segurança no Trânsito de 2011-2020 e com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. Em 2018 é criado o Plano Nacional de Redução de Mortes e Lesões no Trânsito - PNATRANS (Lei 13.614/2018).
Mas algo sucedeu a partir de 2019 para que a tendência de redução de mortes no trânsito mudasse de direção. Esse fato ocorreu nos grandes números nacionais, mas também repercutiu, embora menos, em cidades historicamente mais atentas ao assunto. O gráfico seguinte ilustra a estatística em seis capitais brasileiras: São Paulo, Porto Alegre, Fortaleza, Curitiba, Belo Horizonte e Salvador.
Em que pese a mudança a partir de 2019, o resultado de redução de mortes por acidente de trânsito da década foi significato:
Toda política pública requer uma avaliação de sua efetividade. Por falta de uma análise nacional mais detalhada, é difícil saber qual procedimento ou tipo de ação foi mais determinante na redução de 25% de mortes no trânsito no país de 2014 a 2020, assim como o que levou as cidades citadas a alcançarem os expressivos números. Que houve um esforço, recursos técnicos e financeiros, não resta dúvida. E o que aconteceu depois de 2019?
Se tomarmos, como exemplo, 12 países que historicamente, e de forma permanente, atuam no combate à violência no trânsito, com índices que se encontram no intervalo entre 2 e 6 mortes por 100 mil habitantes, veremos que a redução de mortes no trânsito, com altos e baixos, tem uma tendência de queda bem definida até 2019, uma queda expressiva na pandemia (2020) e um novo crescimento em 2021 e 2022, embora com um número menor relativamente a 2019, o que deve estar preocupando pelo menos metade dos países, como ilustra o gráfico seguinte.
Ressalta-se que, segundo relatório do IRTAD - Road Safety Annual Report 2021, que faz um retrato da acidentalidade na pandemia (2020), em praticamente todos os países acompanhados houve redução de mortes no trânsito. Mas reduzir quando já se está num patamar bem baixo como estão alguns países com índices ao redor de 2 mortes por 100 mil habitantes, como Noruega, Suecia e Dinamrca, deve ser muito mais difícil, exigindo-se esforços cada vez maiores. Já no nosso caso, em que o nosso patamar de 16 mortes para cada 100 mil habitantes ainda é muito alto, há muita “gordura” para baixar. Por isso devemos nos preocupar se esse comportamento da curva é uma nova tendência a partir de 2019.
Que peso teve a participação das autoridades públicas, dos setores de comunicação e das técnicas de engenharia de tráfego, de fiscalização e de educação de trânsito na mudança de comportamento do nosso usuário da via? Pelo menos nacionalmente não sabemos. Como então empreender o PNATRANS? É preciso não só identificar as ações mais efetivas e determinantes para o êxito, mas, sobretudo, estimular sua implementação nacionalmente. Entender o fracasso também nos ajuda a compreender o que deveria ser feito e não vem sendo feito.
Poderíamos tentar explicar nossa diferença com os países pela falta de políticas para redução de mortes de motociclistas no Brasil. Mas, se observarmos o gráfico brasileiro veremos que mesmo com o número de mortes, extraído o de motocicletas, o comportamento da curva é o mesmo: redução drástica entre 2014 e 2019 e crescimento entre 2019 e 2022.
Será que a partir de 2019 mudou o comprometimento das autoridades públicas, não apenas em recursos, mas, sobretudo, em engajamento? As normas e aplicação de regras de trânsito foram abrandadas nesse período? Paramos de fazer campanhas educativas? Preferimos fingir que não há motocicletas em circulação? Nos conformamos com nossos índices?
Acidente, mortes e feridos no trânsito custam muito à sociedade e ao Estado brasileiro. A ONU já lançou a segunda década, de 2021 a 2030. Como queremos chegar em 2030? Respostas a essas indagações continuam abertas. Urge aprofundarmos essa discussão.
(*) Superintendente da ANTP